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Padre Jesuíno do Monte Carmelo

27/07/2021 - Lenita W. M. Nogueira

Padre Jesuíno do Monte Carmelo é o título de um livro de Mário de Andrade, publicado 1945, no qual estuda a vida e a obra dessa figura ímpar que viveu em Itu, SP, atuando como músico, arquiteto, pintor e escultor. Entretanto, não pôde dar a atenção que desejava ao trabalho de Jesuíno como compositor, já que a documentação musical era escassa na época, e voltou sua atenção a outros aspectos de sua atividade artística, como pinturas que podem ser encontradas na igreja do Carmo, no Convento do Patrocínio e na Matriz de Itu, na Capela da Ordem Terceira do Carmo em Santos e em São Paulo1.

                

  Imagens: 1) Pintura do teto da Igreja do Carmo, Itu/SP ; 2) Detalhe do teto da Igreja do Carmo retratando a filha de Jesuíno como um anjo (1a no alto)

 Andrade tinha consciência da importância de Jesuíno como compositor e apesar do caráter literário que imprimiu ao texto, admitido por ele ao afirmar: “tamanha a incerteza, tal a fuga de datas e tão apaixonante a vida do padre Jesuíno do Monte Carmelo, que não evitei de lhe dar expressão literária”, não conseguiu aprofundar o tema. Posteriormente, as composições de Jesuíno foram pesquisadas por Régis Duprat, que, além de localizar, restaurar e analisar algumas delas, elucidou muitas questões sobre a biografia do compositor,  revelando um universo musical muito peculiar. 

Jesuíno Francisco de Paula Gusmão era natural de Santos, SP, onde nasceu em 1764. Foi casado e teve quatro filhos antes de ordenar-se padre em São Paulo em 1793. Nessa época já morava em Itu, onde habitava desde 1781, trabalhando inicialmente como pintor, tendo permanecido ali até sua morte em 1819. Nessa cidade, entre outras atividades, idealizou e fundou o Convento do Patrocínio, uma congregação baseada em rígidas normas de conduta moral, cujos membros, que eram ascetas, pregavam contra a corrupção do clero e procuravam expiar suas culpas e as dos outros através de mortificações e autoflagelações.

Dentro desse espírito de fé e extremado fervor religioso, Jesuíno tinha como único confessor o padre Diogo Antonio Feijó (São Paulo, 1784-1843), futuro regente do Império, que em princípios do século XIX morava na vila de São Carlos, atual Campinas. Caminhando descalço cerca de 50 km e levando um papagaio no ombro, Jesuíno, segundo Andrade, foi regularmente até essa vila somente para a confissão até 1818, quando Feijó transfere-se para Itu, integrando-se aos padres do Patrocínio liderados por Jesuíno e seus filhos.

Enquanto morou na vila de São Carlos, Feijó residiu na chamada rua da Matriz Nova, atual Regente Feijó, a poucos metros da casa de Manuel José Gomes (Santana de Parnaíba, SP,1798-Campinas, 1868), futuro pai de Carlos Gomes, que desde 1815 exercia o mestrado de capela local e certamente não perderia a oportunidade de trocar idéias e partes musicais com Jesuíno, a quem admirava bastante, conforme teria relatado anos depois a Antônio Augusto da Fonseca, morador de Itu (Andrade, 1945, p. 176). Como forma de prestar uma homenagem a Jesuíno após o seu falecimento em 1819, Gomes ia anualmente até Itu para participar das festas do Patrocínio como violinista, até pelo menos 1860.

A austeridade que pautou vida religiosa de Jesuíno e que o estimulava a vencer as dificuldades da distância e do desconforto físico somente para manter sua fidelidade a Feijó, talvez tenha sido um fator determinante na preservação de sua obra musical, pois se até hoje nenhum manuscrito de sua autoria foi localizado, muitas obras chegaram até nós por intermédio de Gomes, que além de ter realizado diversas cópias, manteve outras em seu arquivo pessoal, atualmente no Museu Carlos Gomes em Campinas.

Quando Duprat publicou seu texto sobre Jesuíno em 1985, apenas seis obras haviam sido localizadas. Após o trabalho de catalogação, organização e publicação dos catálogos, tanto do Museu Carlos Gomes em Campinas como do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, temos hoje um total de 16 obras localizadas. As que não estão no arquivo de Gomes são: 9o Responsório das Matinas para Quinta-feira Santa (Caligaverunt), fragmento localizado por Duprat em 1961 no Arquivo Veríssimo da Glória em São Paulo, um singelo Cântico de Verônica, citado por Andrade e copiado por José Vitório Quadros em Itu no ano de 19032 e algumas Jaculatórias atribuídas a Jesuíno, que seriam cantadas nas novenas à Padroeira, na Ordem Terceira do Carmo em São Paulo. Sobre estas últimas, Andrade afirma que soavam “por demais ‘modernas’ para serem compostas antes do Império” (Andrade, 1945, p. 177). Todas as outras, cujas datas variam entre 1825 e 1843, ou são cópias de Gomes ou pertenceram a seu arquivo, como as partes de Miguel Arcanjo Ribeiro de Castro Camargo, padre ituano que morou em Campinas, e mesmo as que estão no Museu da Inconfidência de Ouro Preto.

No Museu Carlos Gomes encontram-se as seguintes obras: Hino Jesu Dulcis Memoria, O Salutaris Hostia, Hino Sacris Solemniis; Ladainha em Sol menor, Missa de Requiem, Paixões de Domingo de Ramos e de Sexta-feira Santa, Cum appropinquaret e Venite exsultemus (Nogueira, 1997).; no Arquivo do Museu da Inconfidência de Ouro Preto estão Matinas do Menino Deus, Matinas de São Pedro, Laudate Pueri e Hino Pangelingua ...corporis.

Com exceção da obra do Arquivo Veríssimo da Glória, de Jesu dulcis memória e Pangelingua...corporis, copiadas respectivamente em 1825 e 1826 por Miguel Arcanjo Camargo, de O Salutaris Hostia, de copista desconhecido,  1837, Cântico de Verônica e das discutíveis Jaculatórias do Carmo paulistano citadas por Andrade, todas as demais cópias são de Gomes. As Paixões citadas acima, embora tenham sido copiadas por seu filho, José Pedro de Santana Gomes (1834-1908), certamente  foram realizadas a partir de manuscritos do pai, já que são bem posteriores às outras obras, sendo que a de Sexta-feira Santa foi realizada já no século XX, em 1904.

Sabe-se que Manuel José Gomes dispunha de uma orquestra em Campinas, mas não temos como saber qual era o instrumental disponível, pois ainda não havia imprensa e não foi localizada nenhuma documentação nesse sentido. Se o material que temos é uma cópia de originais do próprio Jesuíno, teria Gomes colocado nessas partes exatamente o que o compositor escreveu ou teria ele adaptado à orquestra que tinha disponível? Essas questões permanecem sem resposta, mas é lícito supor que, caso fosse necessário, Gomes faria tais adaptações instrumentais, um procedimento usual na época, desde que não alterasse as características das obras.

As composições de Jesuíno têm um caráter muito particular, talvez em função de um aprendizado musical irregular, mas pode-se dizer que escreve em um estilo pré-clássico, permeado por técnicas remanescentes do período barroco, como trechos contrapontísticos, baixo caminhante e baixo cifrado. A questão de cifras é bastante delicada, já que a ausência de documentos originais de Jesuíno não permite ilações no que se refere à sua utilização sistemática e não temos subsídios para saber se Gomes teria acrescentado ou retirado algumas delas. Genericamente, nas cópias de Campinas, as cifras não são abundantes e não estão presentes em todas as obras.

Não se conhecem exatamente em que condições Jesuíno teria aprendido música; teria iniciado seus estudos com os frades carmelitas em Santos, mas não se sabe se tiveram solução de continuidade ou se, a partir de um determinado momento teria estudado por conta própria ou partido diretamente para a prática musical. Se não teve um estudo mais sistemático, Jesuíno superou esse fato através de uma criatividade musical bastante aguçada que, por vezes, surpreende o ouvinte com harmonias e modulações inesperadas, mas introduzidas coerentemente.

Um dos procedimentos mais característicos de Jesuíno é o que Duprat (1985) chamou de abordagem modulatória, isto é, as modulações acontecem continuamente, não sendo incomum encontrarmos duas ou até mais mudanças por compasso, abrangendo as funções de tônica, subdominante, dominante maior e menor. O mesmo autor assinala que a pouca utilização da modulação para a dominante, um artifício característico do universo pré-clássico, por vezes é contraposto à modulação para a subdominante, uma prática modal arcaica.

Uma das obras mais representativas de Jesuíno é o Hino Sacris Solemnniis, copiado por Gomes em 1825 e que tem por subtítulo “para se cantar ao Smo. Sacramento”. A tonalidade é Mi bemol, mas passa por diversas modulações até retornar à tonalidade inicial no final da obra. Além dessas grandes modulações, outras de caráter mais passageiro acontecem durante todo o decorrer da peça.

Todas as composições de Jesuíno conhecidas até o momento são sacras e para coro a quatro vozes a capela ou com acompanhamento instrumental, que pode variar de dois instrumentos até uma pequena orquestra. A exceção à regra é o Cântico da Verônica citado por Andrade, para voz feminina e Venite exsultemus, um dueto para sopranos acompanhado de duas flautas, trombone e baixo, mas, neste caso, pode se tratar de obra incompleta. Três peças foram restauradas e gravadas por Duprat: Cum appropinquaret, Ladainha em Sol Menor e o Responsório 9o. das Matinas de Quinta-feira Santa. As demais, com exceção das duas peças citadas por Andrade, vêm sendo objeto de pesquisas há algum tempo e está sendo preparada uma edição crítica e a registro de parte desse material, que vem comprovar a vitalidade da vida musical em algumas regiões do interior paulista desde o século XVIII.

Relação das obras de Jesuíno do Monte Carmelo localizadas até o momento, a maioria já restaurada pela autora:

- Cântico da Verônica - Voz  feminina Copista:  José Vitório de Quadros, 1903 / Reproduzida por Andrade, op. cit., p. 179.

- Hino Jesu dulcis memória - SATB, vl I e II, bx Copista: M. A. R. C. Camargo, 1826 / Museu Carlos Gomes

- Hino Sacris Solemniis - SATB, vl I e II, bx Copista: M. J. Gomes, 1825 / Museu Carlos Gomes

- Hino Pangelingua ... Corporis - SATB, bx Copista: M. A. R. C. Camargo, 1826 / Museu da Inconfidência

- Jaculatórias (autoria discutível) - SATB Copista: desconhecido / Ordem Terceira do Carmo, São Paulo (?)

- Ladainha em Sol Menor - SATB, vl I e II, cl I/II, tbn, bx Copista: M. J. Gomes, s.d. / Museu Carlos Gomes Restauração: Régis Duprat / Gravação: LP Música Sacra Paulista 2, 1982.

- Matinas de S. Pedro - SATB, vl I e II, vla, vlc, fl cl I/II, cor I/II, of/tbn  Copista: M. J. Gomes, 1827 / Museu da Inconfidência

- Matinas do Menino Deus - SATB, vl I e II, vla, vlc, fl cl I/II, cor I/II, of (tbn) Copista:  M. J. Gomes, s.d. / Museu da Inconfidência

- Missa de Requiem - SATB, vl I e II, cl I e II, bx (tbn) Copista:  M. J. Gomes, s.d. / Museu Carlos Gomes

- Procissão de Palmas - Cum appropinquaret - SATB Copista:  M. J. Gomes s.d. / Museu Carlos Gomes Restauração: R. Duprat / Publicação: Música Sacra Paulista / Gravação:  LP Música Sacra Paulista 2, 1982.

- O Salutaris Hostia - SATB Copista: desconhecido, s.d. / Museu Carlos Gomes / Publicação: Música Sacra Paulista

- Paixão de Domingo de Ramos - SATB, bx Copista: J. P. Santana Gomes, s.d. / Museu Carlos Gomes

- Paixão e Turbas para Sexta-feira Santa - SATB Copista: J. P. Santana Gomes, 1904 / Museu Carlos Gomes

- Responsório 9o das Matinas de Quinta-Feira Santa (Caligaverunt) - SATB, vl I e II, bx Copista: desconhecido, s.d / Arquivo Veríssimo da Glória, São Paulo Restauração: Régis Duprat / Gravação: LP Música Sacra Paulista 2, 1982

- Salmo Laudate Pueri - SATB,  vl I e II, vla, fl I/II, cl I/II, cor I/II, tbn, of, bx Copista: M. J. Gomes, s.d. /  Museu da  Inconfidência

- Venite exsultemus - S I e II, fl I e II, tbn, bx Copista: M. J. Gomes, 1839 / Museu Carlos Gomes

Referências

ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. S.l: Ministério da Educação e Saúde. Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº  14, 1945. 248 p.

DUPRAT, Régis. Garimpo Musical. São Paulo: Novas Metas, 1985. 181 p.

DUPRAT, Régis (org). Música Sacra Paulista. São Paulo: Arte & Ciência / Secretaria de Estado da Cultura    de São Paulo.

NOGUEIRA, L. W. M. (1997). Maneco Músico, pai e mestre de Carlos Gomes. 2ª ed. São Paulo: Pontes Editores, 2019. 136 p.

NOGUEIRA, L. W. M.  Museu Carlos Gomes: Catálogo de manuscritos musicais. São Paulo: Arte e Ciência / Secretaria de Estado da Cultura, 1997. 408 p.

(1) Há alguns anos foi concluída a restauração do forro da Igreja do Carmo na cidade de São Paulo, ao ser retirada a tinta superficial, foi encontrada uma imagem de Nossa Senhora do Carmo pintada por Jesuíno.

(2) A partir de um manuscrito do músico ituano Tristão Mariano da Costa e reproduzido na página 177 da primeira edição do livro de Andrade de 1944 e sem numeração entre as páginas 176 e 177 na edição de 1945.