O Museu Carlos Gomes, situado na cidade de Campinas, SP, pela quantidade de documentos musicais, pode ser colocado como um dos maiores acervos do gênero no Brasil. Sua formação foi bastante peculiar, já que, ao contrário da maioria dos acervos brasileiros, em geral formados a partir da reunião de manuscritos musicais de proveniências diversas, este tem como característica a formação familiar, pois é formado por obras e cópias de Manuel José Gomes (Santana de Parnaíba, SP, 1792-Campinas, SP, 1868), de seus filhos José Pedro de Sant’Anna Gomes (Campinas, 1834-1908) e [Antonio] Carlos Gomes (Campinas, 1836-Belém do Pará, 1896), além de outros músicos próximos a eles.
Manuel José Gomes começou a aprender música com o mestre-de-capela de sua cidade natal e, por volta de 1810, teria estudado em São Paulo com o mestre da Sé, André da Silva Gomes1. Em 1815, fixa residência em Campinas, então Vila de São Carlos, onde passa a exercer o cargo de mestre-de-capela, para o qual foi oficialmente designado em 18202. Exerceu essa atividade até sua morte em 1868 e durante todo este período produziu grande quantidade de manuscritos musicais, englobando composições próprias e cópias de obras de compositores diversos, hoje integrando o acervo do Museu Carlos Gomes.
Figura 1 – Manuel José Gomes
Como mestre-de-capela tinha que cumprir diversas tarefas como cuidar da música nas cerimônias religiosas, reger, compor, copiar música, atuar como professor e, possivelmente, arregimentar e pagar cantores e instrumentistas. Dentro deste contexto, Manuel José Gomes pode ser tomado como um exemplo da atividade musical no Brasil na primeira metade do século XIX e não seria ingenuidade relevar a importância de seu trabalho como copista, já que várias peças de compositores brasileiros só sobreviveram graças às suas cópias. Em um período em que não havia impressão musical no Brasil e o papel era um bem de difícil acesso, a música manuscrita tinha grande valor e a circulação deste material foi o que permitiu que grande parte da música produzida no Brasil durante os séculos XVIII e XIX fosse preservada. Deve-se observar que as composições que chegaram até nós foram produtos da escolha de músicos como Manuel, que, por razões que não cabem aqui, optaram por copiar este ou aquele manuscrito, o que nos leva a lamentar a quantidade de obras que provavelmente foram perdidas nesse processo.
Posteriormente foram agregados outros manuscritos à chamada Coleção Manuel José Gomes, em especial provenientes de seu filho José Pedro de Sant’Anna Gomes, compositor, regente orquestral, violinista, professor e empresário no ramo da música. Ele deu continuidade à atividade do pai, mas é importante destacar que sua atuação ocorreu em condições diferentes. Ao contrário do pai, seu trabalho já não era dedicado predominantemente à música religiosa, mas sim ao público que frequentava teatros e salões. Sant’Anna, embora também tenha tido uma vida musical longeva, não teve uma atividade de copista tão intensa quanto seu pai. Na segunda metade do século XIX, quando sua atuação foi mais destacada, já havia maior circulação de partituras, além de acesso às peças publicadas na Europa, a edição musical no Brasil começava a se ampliar. Além disso, houve um declínio na atividade musical na igreja católica e os músicos tiveram que buscar sua sobrevivência na relação com um público, em geral pagante.
Figura 2 – José Pedro de Sant’Anna Gomes
Cabe utilizar aqui a expressão cunhada por Norbert Elias (1994) em seu livro sobre Mozart. Ao estudar a vida deste compositor, o autor vai inseri-lo na transição entre o que chama arte de artesão, quando o músico era empregado da nobreza ou da igreja, e arte de artista, na qual o mesmo, já sem patrão fixo e com poucos patronos à disposição, é obrigado a buscar o público, que era fundamental, não só para sua sobrevivência, mas também para que sua obra e seu nome fossem reconhecidos.
No caso de Carlos Gomes isso vai ao extremo, já que durante toda a sua trajetória, teve pouca relação com a música religiosa, exceto por algumas peças de juventude (no tempo do artesão), sendo seu nicho a ópera e a música vocal secular (no tempo do artista).
Esta pequena digressão tem como objetivo reforçar a diferença entre a prática musical de Manuel e seus filhos, que se configura em uma distinção entre os materiais produzidos por eles no decorrer do século XIX e que hoje formam o acervo de manuscritos musicais do Museu Carlos Gomes. Ao invés da produção abundante de missas, ofícios e outras peças religiosas, características da produção de Manuel José Gomes (que também produziu obras profanas, mas em menor quantidade), o que predomina na produção de seus filhos são peças instrumentais, ópera, música de câmara, de salão e canções não religiosas.
Não se sabe exatamente como Manuel José Gomes teria formado o seu arquivo de música. Em princípio não há nenhum registro de que tenha se deslocado para fora do Estado de São Paulo, exceto em 1861 quando foi ao Rio de Janeiro, mas seu propósito era extramusical, assistir à estreia da ópera A Noite do Castelo de Carlos Gomes. Embora alguns manuscritos originais de Manuel se encontrem no acervo do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, é lícito supor que lá chegaram por outras vias e provavelmente no século XX, já que não existe qualquer registro de viagens de Gomes para este local ou que ele tenha cedido o material.
É possível que Manuel ampliasse seu acervo durante as viagens que fazia com sua banda pelo interior do estado, onde certamente entrava em contato com outros músicos, com consequente troca de manuscritos. Por outro lado, há registros de que a residência dos Gomes em Campinas era um ponto de parada para músicos de passagem pela cidade, que possivelmente traziam peças musicais que Manuel se apressava em copiar. Outro fator que pode ter sido fundamental para a constituição deste acervo é que Campinas era um ponto de pouso para quem se dirigia para Minas Gerais e Goiás. Possivelmente alguns tropeiros transportassem partes musicais que, por haver apenas um único exemplar, deveriam ser copiadas quando as caravanas paravam para descansar na cidade. Talvez isso explique o fato de haver neste acervo tantas obras de compositores mineiros.
O inventário de Manuel José Gomes, falecido em 1868, encontra-se no Arquivo do Poder Judiciário, hoje sob a guarda do Centro de Memória-Unicamp. Neste material encontra-se um documento assinado por Sant’Anna Gomes solicitando ao juiz que, na partilha dos bens do pai, fosse reservado a ele os instrumentos musicais e o arquivo de música, no que foi atendido. Sant’Anna se torna, então, proprietário do material, o que talvez tenha sido fundamental para sua preservação. Ali encontramos os seguintes valores, o que demonstra que, se comparado aos instrumentos, o arquivo de música era um bem valorizado.
Figura 3 – Relação de bens no inventário de Manuel José Gomes
Por volta de 1905, nove anos após o falecimento de Carlos Gomes, pensou-se em criar no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), entidade particular com fins científicos e culturais fundada em Campinas em 1901 e em atividade até nossos dias, um arquivo dedicado a este compositor. A ideia foi encabeçada por um dos diretores desta entidade, César Bierrenbach, que começou a recolher diversos documentos sobre o compositor campineiro. Este material foi acondicionado em duas caixas de madeira ricamente decoradas e foi o embrião do Museu Carlos Gomes, fundado oficialmente em 1954, quando surgiu a ideia de criar um acervo mais amplo, que englobasse cartas, fotos, documentos, objetos diversos e partituras relativos a este compositor e até então dispersos.
Não se sabe como e quando a atual Coleção Manuel José Gomes foi incorporada ao Arquivo/Museu Carlos Gomes, mas podemos supor que, após a morte de Sant’Anna em 1908, seus manuscritos musicais teriam sido doados ao mesmo CCLA, no qual atuou como diretor de música, e assim incorporados ao material que iria fazer parte do futuro Museu Carlos Gomes. Como naquele primeiro momento da fundação do Museu o pensamento estava voltado exclusivamente para a reunião de documentos de e sobre Carlos Gomes, nem se cogitava que a coleção legada pelo seu pai e irmão poderia ter algum valor histórico e ou artístico-musical. Isso é compreensível, já que naquela época mal se cogitava em uma musicologia brasileira e não havia a percepção da importância da preservação de documentos musicais. O material, embora preservado, ficou relegado e sem organização até a década de 1990, quando foi realizada a limpeza, o acondicionamento adequado e a disponibilização deste acervo através da publicação de seu catálogo (NOGUEIRA, 1998). Provavelmente, a atual Coleção Manuel José Gomes só chegou a nossos dias por serem documentos relativos ao pai de uma ilustre figura nacional, caso contrário poderia ter perecido como grande parte da documentação musical brasileira produzida em regiões mais distantes da capital do império.
Além de um acervo objetual e bibliográfico, o Museu abriga um arquivo de documentos musicais que inclui, além das coleções de manuscritos, impressos, livros, libretos de ópera, música popular, produzidos durante todo o século XIX e início do XX. O acervo conta com duas coleções catalogadas: a Coleção Carlos Gomes, formada por manuscritos do ilustre compositor, e a Coleção Manuel José Gomes, formada por manuscritos produzidos e juntados durante a vida de Manuel José Gomes e José Pedro Sant’Anna Gomes. Os dois produziram um copioso trabalho como compositores e copistas, juntando um acervo de música sacra e de banda que guarda algumas raridades como as únicas cópias encontradas até hoje de obras do Pe. José Maurício Nunes Garcia, André da Silva Gomes, Jesuíno do Monte Carmelo, compositores mineiros, além de obras de portugueses e italianos, entre outros.
O acervo do Museu Carlos Gomes tem grande potencial para o desenvolvimento e difusão de pesquisas sobre a cultura musical do século XIX na região de Campinas, grande centro econômico e cultural do interior paulista neste período. O acervo acima descrito abriga vários registros da cultura musical do período colonial e imperial, sendo de indiscutível relevância para os estudos históricos sobre o fazer musical dessa região do país, sobretudo ao considerarmos a grande influência da família Gomes como um polo irradiador de cópias de músicas para todo o interior paulista, fato ainda pouco estudado pelos musicólogos.
O acervo musical, estimado em aproximadamente 1.000 documentos, é constituído por conjuntos documentais diversos, de proveniência privada, de músicas sacras e profanas, com diversas formações vocais e/ou instrumentais, manuscritos e impressos, datáveis de fins do século XVIII ao início do XX.
Fisicamente, a classificação do acervo foi baseada no já referido catálogo publicado em 1998, que segue a classificação em ordem alfabética por sobrenome do compositor e, dentro de cada um deles, segue-se uma divisão por gênero.
Neste ano de 2023, o Museu Carlos Gomes vem recebendo substancial apoio do Projeto Musica Brasilis, o que vem possibilitando a conclusão da digitalização de todo o acervo de manuscritos musicais, bem como a publicação de relevantes partituras ali depositadas, incluindo obras de Carlos Gomes, Sant’Anna Gomes, Jesuíno do Monte Carmelo, entre outros. Uma importante inciativa no sentido de proteger e divulgar a música brasileira.
Figura 4 - Drª Rosana Lanzelotte (Instituto Musica Brasilis) e Drª Lenita W. M. Nogueira (Museu Carlos Gomes / Unicamp)
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. NOGUEIRA, Lenita W. M. Maneco Músico, pai e mestre de Carlos Gomes. São Paulo: Arte & Ciência, 2018. 2ª ed.
NOGUEIRA, Lenita W. M. Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
1 Com o qual não tem nenhum parentesco.
2 Este documento encontra-se no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.