Sonata "Sabará" n°2 - Manuscrito do século XVIII, para pianoforte ou cravo, localizado no município de Sabará (MG); detalhe do fólio 5, retro
Se as Minas Gerais fossem sonorizadas, talvez suas melodias seriam refratárias e múltiplas como são as vozes que compõem o potencial coro da memória.
Dizeres construídos a várias mãos, sussurrados em temporalidades diversas entre si e que, quando contemplados em conjunto, estruturam o terreno sinfônico da historiografia-musicológica sobre as Minas setecentistas.
Compreender esse campo de imaginários elaborados se tornou uma tarefa e objetivo pessoal, lançando ao ambiente acadêmico minhas inquietudes de modo que fosse possível ao menos vislumbrar qual é essa "sintaxe" de se dizer mineiro, musicalmente.
Entre 2019 e 2023, dando prosseguimento a uma jornada de mais de uma década de pesquisas ininterruptas, realizei pesquisa doutoral na Universidade Federal de Minas Gerais tendo por objetivo compreender a maneira pela qual "a música em Minas Gerais setecentista" foi elaborada e estruturada no campo da musicologia brasileira ao longo dos séculos XX e XXI.
Ao longo da pesquisa, ficou cada vez mais nítida a necessidade de uma viragem de paradigma para a musicologia. Especificamente, o reconhecimento da inventividade como ferramenta inerente do processo de escolha, análise, interpretação e compreensão.
Neste artigo, descrevo como a pesquisa foi realizada, as metodologias adotadas, os conceitos de alicerce e, sobretudo, a interpretação final sugerida.
A tese, resultado do processo de doutoramento conduzido no Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG com apoio institucional da CAPES, centrou-se na compreensão do processo historiográfico em musicologia sobre Minas Gerais ao século XVIII, especificamente sobre as práticas musicais, agentes, instituições, espaços e as narrativas elaboradas ao longo do século XX e XXI sobre este contexto.
Defendi como tese a necessidade de reconhecimento de uma prática inventiva, em sentido antropológico1 e não ficcional ou literário, como integrante dos processos interpretativos localizados na relação entre musicólogo e suas fontes: entre observador e objeto.
Do mesmo modo, sugeri, como agenda à prática musicológica, a tomada de consciência acerca da inventividade-historiográfica e uma potencial abertura a práticas de escrita em certo paradigma de Liberdade Inventiva. Aspecto que reforça, em meu entendimento, a necessidade de identificação de autorias e intencionalidades de fundo na elaboração de imaginários sobre Minas Gerais ao século XVIII.
Em paralelo, também propus a ampliação da participação de novos imaginários, reconhecendo a necessidade de uma musicologia pluriverbal e ciente de suas linhas de intencionalidade narrativa e discursiva na construção da memória.
Para tanto, avaliei de maneira minuciosa diversos procedimentos e metodologias adotadas pela musicologia brasileira ao longo dos séculos XX e XXI, sendo agrupados em dois campos de acordo com os recursos utilizados: fontes de natureza musicográfica e não-musicográfica.
Para o primeiro campo, musicográfico, foram analisadas edições contemporâneas de obras do setecentos e oitocentos mineiro, tendo em vista a identificação, avaliação e compreensão de práticas de reconstrução narrativa pela intervenção editorial.
Desse modo, demarcando o processo de editoração diplomática dos manuscritos musicais como uma empresa de ordem poética, sublinhando a subjetividade como motor de invenção e ressaltando a necessidade de reconhecimento do autor/editor na reelaboração das obras editadas e na estruturação de imaginários patrimonializados da música em Minas Gerais setecentista.
Ou seja, distanciando-se de aspectos de objetividade ou neutralidade da relação com os objetos, preconizada pelo discurso da editoração em música - em meu entendimento, por mais que ressoem valores e abordagens tidas como críticas2.
Arquivo Público Mineiro: Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP - 113, f.49v-50r) - Auto de arrematação da Música para as festas de 1792 em Vila Rica
Já para o segundo campo, nomeado de não-musicográfico, foram avaliadas metodologias e procedimentos de análise e compreensão em documentos de natureza contábil, administrativa, censitária, financeira e associativa cujo conteúdo se relaciona aos espaços, agentes e práticas musicais em Minas Gerais no recorte em questão.
Dado certo silêncio documental acerca do repertório, composições e práticas performativas ao setecentos em Minas Gerais, esta classe não-musicográfica foi recorrentemente acionada pela musicologia como estratégia metodológica complementar.
Apesar de seu potencial à compreensão contextual das práticas musicais, tais classes documentais demonstram, com maior intensidade, uma agenda de elaborações narrativas e constituição discursiva de imaginários.
Aspecto orientado, também, pela subjetividade presente desde a recolha de fontes tidas como pertinentes à pesquisa até sua interpretação e elaboração historiográfica.
Desse modo, sinalizei como tese a necessidade de compreensão da inventividade como resultado da relação entre observador (diacrônico) e seus objetos consultados (documentação musicográfica e não-musicográfica). Prática distante da ficcionalidade literária, mas com potencial impacto na elaboração de imaginários propostos à musicologia.
Como sugestão interpretativa ao processo historiográfico-musicológico sobre a música mineira do século XVIII, defendo a tese de que a musicologia e seus praticantes devem reconhecer certa natureza inventiva do processo historiográfico3.
Neste sentido, a inventividade se posiciona como referencial ao entendimento dos processos de elaboração e escrita em musicologia, guiando-nos na compreensão de um nova e possível tapeçaria historiográfica plural e sensível às contradições do passado e às exigências do contemporâneo.
Analisando o uso de documentos musicográficos e não-musicográficos, compreendo que a prática musicológica tradicional acaba por fabricar imaginários. Por exemplo, a edição de partituras é apresentada como um processo técnico e objetivo, contudo, estrutura-se em um conjunto de variáveis inerentes ao processo de leitura, interpretação e (re)composição narrativa.
A despeito de qualificar com tons de inventividade aspectos da prática musicológica brasileira sobre Minas setecentista, não estabeleço quaisquer sinais de demérito ou desqualificação desta empresa do saber. Essencialmente por acreditar que ser inventivo é um benefício, uma habilidade, um patrimônio intelectual que deve ser polido e exposto com orgulho. A invenção move, desloca, reluz e seduz. Em outras palavras, ter boas histórias inventadas institui imaginários necessários e saudáveis.
No entanto, ao reconhecer a inventividade como parte fundamental da pesquisa, podemos construir um novo paradigma para a musicologia; que valoriza a subjetividade, a intersubjetividade e a liberdade de criação interpretativa.
Para isso, é preciso romper com referenciais epistemológicos que definem o musicólogo como um observador não participativo. Em meu entendimento, o musicólogo é um agente ativo que interpreta e constrói significado a partir de suas fontes e, desse modo, também responde por suas interpretações e pelas narrativas e cacos de imaginário que constrói.
Por isso, o paradigma da liberdade inventiva não significa abandonar procedimentos e práticas do meio científico - ética intelectual, verificação de plágios, análise da estrutura metodológica, validação ou rejeição de resultados a partir de sua aderência aos procedimentos adotados, oposição ou endossamento de sugestões interpretativas, reavaliação posterior e crítica etc.
Ao contrário, significa usá-lo de forma crítica e reflexiva, reconhecendo os limites da narrativa e a necessidade constante de incorporação de novas e outras interpretações que provoquem uma abertura sensível e pluriverbal a novos saberes, agentes, locais, perspectivas, interpretações e inquietudes.
Ao abraçar a liberdade inventiva, a musicologia pode se tornar um campo de criação e de produção fértil alinhada com as inquietudes e exigências de nosso tempo, posicionando-se como um campo que contribua para a compreensão do passado, elaboração da memória e para a construção de um futuro mais plural e inclusivo.
Cópia do início do século XX, parte cava de Contralto - Moteto "Venite adoremus" (MOT-01/659): Núcleo de Acervos da Escola de Música da UEMG. Anônimo Mineiro, provável século XIX
Acredito que a tese pela liberdade e invenção possibilita à comunidade acadêmica o direcionamento a um olhar crítico e estruturado, a partir da avaliação de campos metodológicos e conceituais amplamente adotados, tendo como critério a denúncia de uma relação entre musicólogo/analista, suas fontes e processos interpretativos.
Aspecto sumarizado em metáfora que associa a relação entre a paixão-de-si narcísica4 com as fontes consultadas, a decepção necessária com a compreensão da presença-de-si nos objetos e, em adição, o distanciamento de uma prática de enaltecimentos ou apologias comum à figura mitológica de Midas.
A tese, portanto, apresenta aspectos de ineditismo para o campo uma vez que possibilita um giro de paradigma, anunciando aspectos como:
Acredito que desde o processo de direcionamento do olhar até o de composição mnemônica há presença da ação em primeira pessoa. Essencialmente, o analista, desejoso em saber, constrói recursos, elege objetos e se projeta naquilo que propõem - consciente ou não.
Neste movimento, algumas etapas convencionais estão presentes: a escolha do material tido como relevante e aderente ao objeto de pesquisa e ao problema formulado; a edição e adaptação dos recursos de pesquisa às inquietudes de saber; e a invenção como resultado desta tarefa relacional.
Acredito que o próximo passo, saudável e plural, seria a decepção com a presença do analista em todas as etapas e o decorrente reconhecimento de liberdades. Evidentemente, quando se abre à liberdade também se outorga autorias e responsabilidades. Aspecto que direciona não ao resultado narrado, per se, mas àquilo que o escrito sustenta.
Isto é, se aquele imaginário sugerido pela liberdade inventiva é poroso a outros imaginários, ou se a narrativa apresentada também contempla a urgência de uma disciplina de vários saberes, vozes e identidades.
Desse modo, reconhecer a subjetividade também implica em movimentar-se pela intersubjetividade. Aquilo que, coletivamente, direciona à elaboração da memória social, do patrimônio e de inúmeros pertencimentos.
Para ler a tese de doutorado "O intérprete de histórias inventadas: Minas Gerais setecentista na balança da Musicologia", acesse o Repositório Institucional da UFMG.
GRIER, James. The critical editing of music: history, method, and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Claudia Berliner; revisão da tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010;
VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora da UNB, 1998;
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. WEGMAN, Rob C. Historical Musicology: Is it Still Possible? In: CLAYTON, Martin; HERBERT, Trevor; MIDDLETON, Richard. The cultural study of music: a critical introduction. London/New York: Routledge, 2012.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995
Notas:
1 Para um aprofundamento sobre o conceito antropológico de "invenção", sugiro a leitura da obra de Roy Wagner. Especialmente: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
2 Como exemplo, a defesa pela re-elaboração técnico-procedimental de J. Grier: "the interpreter must re-create, so far as it is possible, the historical context and conventions within which the text of the work was fixed in order to understand the meaning of each symbol” (GIER,1996, p.27). Tarefa que pressupõe certa prática de observação distanciada pela qual, numa ponta, encontra-se o agente observador e, na outra, seus objetos cotejados. Por outras palavras, uma panorâmica somente possível quando se propõe uma cisão entre observador e objeto. Para saber mais, consulte: GRIER, James. The critical editing of music: history, method, and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
3 Para saber mais sobre o assunto, consulte: RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Claudia Berliner; revisão da tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010; VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora da UNB, 1998; WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995
4 O musicólogo norte-americano Rob C. Wegman (2012) apresenta uma bela e pertinente análise (que também adoto e aprecio) sobre a relação entre observador diacrônico e sua relação proto-narcísica com as fontes consultadas, especificamente no campo denominado Musicologia Histórica. Sobre o assunto, consulte: WEGMAN, Rob C. Historical Musicology: Is it Still Possible? In: CLAYTON, Martin; HERBERT, Trevor; MIDDLETON, Richard. The cultural study of music: a critical introduction. London/New York: Routledge, 2012.
Felipe Novaes - Doutor em Musicologia Histórica pela UFMG - f.novaesr@gmail.com
Minibio:
Doutor em Musicologia (UFMG), pesquisador do Centro de Estudos dos Acervos Musicais Mineiros (CEAMM/CNPq), membro colaborador externo do Caravelas: Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira (CESEM-NOVA/FCSH), do Núcleo de Estudos em Música Brasileira (NemuB/CNPq) e da Associação Brasileira de Musicologia (ABMUS). Atua nas linhas de pesquisa "Estudos Musicológicos - Música Brasileira", "Música: historiografia e musicologia" e "Investigação em Musicologia, Patrimônio, Repertórios e Acervos Musicais". Apresenta interesse de pesquisa nos campos da memória, identidade, processo historiográfico-musicológico e patrimônio musical. Atua de maneira inter/intra/transdisciplinar com os campos da História Social da Cultura e História da América Portuguesa, com atenção ao território da Capitania de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Atuou como músico concertista, tendo apresentado em salas da Itália e Alemanha.