O povo é quem mais ordena: O Festival Internacional da Canção e a Revolução dos Cravos
Paulo de Carvalho venceu o X Festival da RTP, de 1974, com E Depois do Adeus (José Calvário/ José Niza), …
Paulo de Carvalho venceu o X Festival da RTP, de 1974, com E Depois do Adeus (José Calvário/ José Niza), conquistando o direito de representar Portugal em Brighton, no Festival Eurovisão daquele ano. A canção, romântica, descreve o fim de um relacionamento amoroso, não tendo qualquer conotação política. Entretanto, 18 dias depois da apresentação no Reino Unido, E Depois do Adeus foi utilizada como primeira senha para o avanço das tropas que desencadearam a Revolução de 25 de Abril, mais conhecida como Revolução dos Cravos, tornando-se a primeira (e até o momento a única) canção eurovisiva a “iniciar uma revolução”¹.
A outra senha foi Grândola, Vila Morena (José Afonso), canção emitida às 0h20min do dia 25, no programa Limite da Rádio Renascença, precedida pela leitura de sua primeira quadra (Grândola, Vila Morena/ Terra da fraternidade/ O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti, ó cidade). Para esta composição José Afonso se inspirou nos colhedores de trigo da região de Grândola, no Alentejo, trabalhadores camponeses “amoreinados” pelo sol. Na biografia de Zeca Afonso, Irene Flunser Pimentel mostra que:
“A Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) convidou-o para actuar, juntamente com Carlos Paredes, em 17 de Maio de 1964, curiosamente, um mês e cinco dias após o presidente da República, Américo Tomás, ali ter passado e ter sido recebido ‘efusivamente’. [...] José Afonso contou mais tarde ter ficado ‘brutalmente satisfeito com o convite’ da SMFOG [...] Quatro dias depois do espectáculo, José da Conceição recebeu de José Afonso uma missiva com um poema dedicado à SMFOG, lido publicamente na sala desta colectividade em 31 de Maio, por ocasião da estreia do grupo de teatro da sociedade musical: tratava-se de ‘Grândola, vila morena’.”².
A canção foi editada no LP Cantigas de Maio (1971), que teve José Mário Branco como diretor musical e arranjador e, de acordo com a Enciclopédia da Música em Portugal no século XX: “O trabalho de J. M. Branco foi determinante para a identidade sonora do álbum que se tornou num marco da carreira de J. Afonso.”³. Ele quem teve a ideia de gravar os passos (feitos por ele, José Afonso e Francisco Fanhais) com os de camponeses cantando em grupo pela estrada, no que mais parecia os passos de um exército em marcha.
Esse foi o último aviso para que as tropas do Movimento das Forças Armadas (MFA) avançassem. “Segundos depois de a canção ir para o ar, põem-se em marcha os motores dos veículos militares em várias localidades portuguesas. A revolução tinha começado.”⁵. Em pouco tempo as rádios, a televisão e o aeroporto de Lisboa já estavam tomados, e, às 4h26min, é lido por Joaquim Furtado, na Rádio Clube Português, o primeiro comunicado das Forças Armadas, no intuito de acalmar a população: “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.”⁶.
Durante aquele dia, o povo foi aos poucos saindo às ruas e, em número cada vez maior, passaram a confraternizar com os soldados. Era o adeus ao Estado Novo, depois de mais de quarenta anos no poder, o que o caracterizava como o regime autoritário mais longo do século XX. A Revolução dos Cravos, por sua vez, representou um novo modelo de processo revolucionário: “O facto de pelos canos das armas saírem flores em vez de morte outorga ao povo português uma dignidade que o resto do mundo recoheceu admirado.”⁷.
Imagem: Soldados com cravos vermelhos nas lapelas e cano do fuzil.
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB): Atlas Cronológico do Século XX. Edição Especial. Lisboa: Terenas Editores, [2003], p. 403.
Não obstante, há um fato curioso na escolha das canções-senhas para o arranque das tropas portuguesas, que mantém uma estreita ligação com o Brasil, mais especificamente com o Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro (FIC) e sua fase internacional, em que competiam países do mundo todo e na qual Portugal foi um dos poucos a concorrer em todas as edições.
Em 1972, quando excepcionalmente o FIC aceitou duas canções de cada país, Portugal se fez representar por foi Maria Vida Fria (José Niza/ Pedro Osório), interpretada por Paulo de Carvalho, e A Morte Saiu à Rua (José Afonso), apresentada pelo próprio autor, ou seja, os mesmos cantores que dois anos depois cumpririam papel histórico em seu país, tendo músicas suas escolhidas como gatilho para a Revolução dos Cravos.
Maria Vida Fria, canção de José Niza e Pedro Osório, foi interpretada por Paulo de Carvalho no VII FIC, em 1972, cantor convidado pelo Diário de Lisboa pela representar Portugal no festival brasileiro daquele ano. Mas essa canção sequer foi a primeira apresentada pelos compositores à organização do FIC. A verdade é que, primeiramente foi submetida Antes que seja Tarde, dos mesmos autores, que foi vetada pela censura, por ser categorizada como “Canção de Protesto” e “Instrumento Subversivo”. A letra, de fato, trazia versos diretos, indicando desigualdades, pois se havia um “homem a subir à lua” outro homem ainda “dorme na rua”, denunciando que havia “guerras por parar” (numa referência às guerras coloniais, acirradas naquela altura), lembrando ainda a opressão e perseguição impetrada pelo Estado Novo (“Há um preso por roubar pão/ E outro só por dizer não”) e os atos de censura (“Há palavras a empunhar/ Silêncios a rasgar”).
Com a proibição, a letra foi rapidamente refeita, o que despertou as suspeitas dos censores, alegando que a rápida mudança era indício de que o veto era pressuposto, por isso a letra foi novamente vetada e em seu lugar foi apresentada Maria Vida Fria que, apesar de aparentemente uma simples canção de amor, pode ser vista como de intervenção, na medida em que descrevia uma mulher solitária, sem esperança, que vive a agústia e a ilusão, uma mulher que foi da “noite”, que na “cama foi de cem”, embora “teu corpo, de ninguém”, uma mulher da vida, uma mulher de “vida fria”.
No Brasil, Paulo de Carvalho lançou seu disco Eu, Paulo de Carvalho (1971), jogou futebol e cantou ao lado de grandes nomes da música mundial, tais como a francesa Nicoletta e o israelense, radicado na Inglaterra, Mike Brant. Paulo de Carvalho se apresentou na segunda semifinal, mas não passou para a final daquele certame.
Neste ano, como já dito, duas canções de cada país seriam aceitas para o sétimo e último FIC. O Diário de Lisboa, responsável pelo recrutamento dos representantes portugueses, escolheu Paulo de Carvalho e restaria uma vaga para a qual se faria uma votação junto aos leitores do jornal. O primeiro voto foi para Tonicha, que esteve no FIC do ano anterior, mas que prontamente declinou da hipótese de ir ao festival novamente. Na continuidade da votação o nome de José Afonso despontou como primeiro e, mesmo pouco afeito a festivais, resolveu ir ao Brasil, pela vontade que tinha de conhecer o país e para fazer valer a vontade do povo, que o elegeu como representante português no festival brasileiro.
A canção apresentada por José Afonso no VII FIC foi A Morte Saiu à Rua, composição dele mesmo em homenagem a José Dias Coelho, artista plástico e militante político, morto pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) nos arredores de Lisboa⁸.
Nos jornais brasileiros, Zeca Afonso era apontado como um músico e poeta refinado e muitos brasileiros demonstraram interesse em conhecê-lo antes mesmo de sua chegada. Mas José Afonso, que foi o primeiro a se apresentar na primeira semifinal, cantou para um público frio, mal chegado ao ginásio, um público festivaleiro pouco disposto a compreender a estética de sua canção e tampouco a sua poesia, de modo que também não passou para a final. Se disse que, enfurecido, quase jogou o violão na plateia, o que o cantor português negou, emitindo uma carta ao jornal Tribuna da Imprensa na qual se lê:
“No entanto, por lamentável equívoco, têm-me sido atribuídas palavras segundo as quais ‘eu não teria atirado com o violão ao público do Maracanãzinho por respeito ao F.I.C.. Sempre achei e continuarei a achar, até prova em contrário que o público sempre tem razão, mesmo quando não a tem. Quero com isso dizer que se o público reage mal a uma canção válida, algo o motivou para isso. [...] Não consegui apresentar a minha canção ‘A morte saiu à rua’. Por um motivo ou por outro senti-me numa arena. Mas bem pude notar que não vaiavam o que eu cantava. Simplesmente, não me chegaram a ouvir – o que lamento muito.”⁹ .
José Afonso deixou o Brasil um pouco consternado, mas feliz pelo papel cumprido e bastante elogiado por todos com quem esteve. A Morte Saiu à Rua, que permenece como uma das canções mais emblemáticas do canto de intervenção português, foi reapresentada no I Encontro da Canção Portuguesa, realizado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no dia 29 de março de 1974, o mesmo em que Grândola, Vila Morena foi escolhida como senha para a Revolução de 25 de Abril.
¹ O’CONNOR, John Kennedy. The Eurovision Song Contest: The Official History. London: Carlton Books, 2010, p. 59, tradução nossa. Ver também: RAYKOFF, Ivan. Camping on the borders of Europe. In: RAYKOFF, Ivan; TOBIN, Robert Deam. A Song for Europe: Popular Music and Politics in the Eurovision Song Contest. Hampshire: Ashgate, 2007, p. 05, tradução nossa.
² PIMENTEL, Irene Flunser. José Afonso. Coleção Fotobiografias Século XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, pp. 71-73.
³ TILLY, António; ROXO, Pedro. José Mário Branco. In: CASTELO-BRANCO, Salwa (dir.). Enciclopédia da Música em Portugal no século XX. vol. 1. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, p. 170.
⁴ FANHAIS, Francisco. Canto de intervenção, 25 de Abril e Associação José Afonso. In: Revolução dos Cravos: 50 anos/ Golpe de 1964: 60 anos: Música e autoritarismo. Apresentação Projeto Luso-Brasilidades do Real Gabinete Português de Leitura (online). Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=jOk37PSl6IM> Acesso em: 11 abr. 2024.
⁵ Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB): Atlas Cronológico do Século XX. Edição Especial. Lisboa: Terenas Editores, [2003], p. 404.
⁶ “25 de Abril de 1974”. RTP Arquivos (site), s/d. Disponível em: <https://arquivos.rtp.pt/colecoes/25-de-abril-de-1974/> Acesso em: 20 jun. 2019.
⁷ Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB): Atlas Cronológico do Século XX. Edição Especial. Lisboa: Terenas Editores, [2003], p. 405.
⁸ LETRIA, José Jorge. A Canção Política em Portugal (da Resistência à Revolução). prefácio de José Barata Moura. 2ª ed.. Lisboa: Ulmeiro, [1978] 1999, pp. 42-43. Ver também: CORREIA, Mário. Música Popular Portuguesa: Um ponto de partida. Porto: Centelha/ Mundo da Canção-MC, 1984, p. 53. Ver também: TELES, Viriato. As Voltas de Um Andarilho: Fragmentos da vida e obra de José Afonso. Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 53.
⁹ “Histórias para serem contadas da ida de José Afonso ao Rio”. por José António Spencer. República, 06 out. 1972, p. 07, AJA (Acervo). Ver também: “José Afonso: Um homem em carne viva”. por Lurdes Féria. R&T Espectáculos, 28 out. 1972, p. 29, AJA (Acervo). Ver também: TELES, Viriato. As Voltas de Um Andarilho: Fragmentos da vida e obra de José Afonso. Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 54. Ver também: SALVADOR, José A.. Zeca Afonso: Livra-te do Medo. Lisboa: Público, 2014, p. 193.
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