Talvez não seja fácil, hoje, imaginar o fascínio que o Brasil exercia no europeu no início do século XIX. Todo um novo universo se desvendava aos olhos de viajantes curiosos, enviados em missões por seus países de origem, com a tarefa de mapear, descrever, retratar, fazer levantamentos geográficos e geológicos. Radiografar, enfim, terras ricas e esplendorosas, que aguçavam a curiosidade do velho mundo. O relato desses viajantes acabou por transformar-se em documentação importante, capaz de acrescentar ao nosso conhecimento da História detalhes da vida cotidiana do período, que dificilmente teriam sido preservados, não fossem essas atentas e minuciosas descrições. Um desses relatos, talvez o mais detalhado e interessante, é o Reise in Brasilien, “Viagem pelo Brasil”, dos naturalistas bávaros Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius. Em uma longa viagem, entre 1817 e 1820, o botânico Martius e o zoólogo Spix percorreram milhares de quilômetros pelo país, visitando São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.
O riquíssimo legado dos naturalistas extrapola o interesse meramente científico. Spix e Martius deixaram-se encantar pela viagem, pelo homem e seus costumes, por uma diversidade cultural até certo ponto harmônica, em que as culturas índia, negra, mestiça, e branca começavam a fundir-se em um poderoso caldeirão multicultural.
As modinhas que vão editadas nesta Biblioteca pertencem ao Anexo Musical do “Viagem pelo Brasil”, em que foram anotadas as Brasilianische Volkslieder, ou Canções Populares Brasileiras, e as Indianische Melodien, ou Melodias Indígenas. Todas as melodias presentes no Anexo são anônimas. Seu caráter é, em geral, como aponta Mário de Andrade, o de “modinhas burguesas de salão”. Mas o próprio autor lembra, mais uma vez reforçando a dualidade e interpolação destes gêneros, que entre elas está também o lundu “Uma Mulata Bonita”, além, é claro, do já famoso “Landum” instrumental que encerra o Anexo. Curiosamente, o Anexo indica que a peça teria sido ouvida em Minas e Goiás, mas o seguinte trecho, além de nos informar sobre o caráter das danças e festividades, afirma que os versos também eram cantados na Bahia:
“As festas dos primeiros dias do ano novo, às quais assistimos na Vila dos Ilhéus, são provavelmente análogas aos regozijos populares, provavelmente vestígios das saturnálias que se celebram no Natal em Cornualhas, e nas quais o cavaleiro São Jorge e seu adversário pagão falam em verso. No norte da Inglaterra e na Escócia, fazem-se iguais representações com mascarados, os chamados guizardes, que vão de casa em casa e figuram o adversário pagão, como personagem cômica com o nome de galatiano. Tão eloqüentes, como são descritos esses atores populares ingleses, não eram, entretanto, os atores brasileiros; somente no banquete festivo é que eles se tornam cada vez mais ruidosos, acompanhando a música da dança com estrofes arrancadas de canções populares. Estas, em geral, cantam os acontecimentos locais, e são, às vezes, improvisos dos próprios dançadores. Algumas destas estrofes são muito engraçadas, outras lascivas. Ouvimos, entre outras, o lundu, acompanhado com os seguintes versos:
Entendo que vossa mercê me entende,
Entendo que vossa mercê me engana;
Entendo que vossa mercê já tem
Outro amor, a quem mais ama.
Também os seguintes versos são cantados na província da Bahia, em danças semelhantes:
Uma mulata bonita não carece de rezar;
Abasta o mimo que tem, para sua alma salvar.
Mulata se eu pudera no mundo formar altar,
Nele te colocaria, para o povo te adorar.
Esta “Uma Mulata Bonita” não parece corresponder, em caráter, no entanto, à descrição das festividades em que foi escutada na Bahia. A canção traz um caráter mais sutil do que o que se poderia esperar pela transcrição acima, incluindo mesmo uma modulação para a tonalidade homônima menor. A informação presente no Anexo de que a obra foi recolhida em Minas e Goiás permite-nos especular que o lundu acima descrito seja outra canção, fazendo uso, apenas, do mesmo texto. (Apesar de algumas diferenças entre o texto do Anexo e o transcrito acima, como o uso de “Abasta”, no lugar de “Basta”, com significativa alteração de conteúdo.) Não seria a primeira vez que um mesmo texto se encontraria aplicado a diferentes melodias.
O “Landum”, também no Anexo, parece assumir muito mais o caráter explicitado na transcrição acima, com perfil improvisatório e forte apelo popular. É curioso mesmo notar, neste “Landum”, que o final não combina com todo o resto, sugerindo que tenha sido escrito por seu anotador, pela necessidade finalizar uma melodia que, talvez, tenha sido variada por mais muitas horas na ocasião em que foi escutada.
A primeira modinha registrada no anexo é “Acaso são estes”, com texto da lira V da primeira parte da Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga. Outras doze liras da mesma coleção foram também musicadas, possivelmente por Marcos Portugal, e editadas por César das Neves no Cancioneiro de Músicas Populares.
Além de “Acaso são estes”, “Qual será o feliz dia”, “Perdi o rafeiro” e “Escuta Formosa Marcia” foram ouvidas em São Paulo. O trecho que transcreveremos relata o talento musical das paulistas, além de ser importante documento sobre o uso do violão nos acompanhamentos:
“O fato de ser a música, igualmente, ainda caótica, e à busca de seus elementos primitivos, não nos estranhava; pois, além do violão predileto para o acompanhamento do canto, nenhum outro instrumento é estudado. Quanto ao próprio canto, o gosto do paulista já é mais desenvolvido. Fomos levados uma noite, por um compatrício europeu do extremo Norte, o Sr. Danwart, capitão sueco aqui residente, a um sarau, que nos deu opinião muito favorável sobre o talento musical das paulistas. O seu canto é todo de singeleza e ingenuidade, e, pela extensão da voz não muito forte de alto-soprano, corresponde perfeitamente aos idílios poéticos. As modinhas são de origem portuguesa ou brasileira. Estas últimas distinguem-se das primeiras pela naturalidade do texto e da melodia. São inteiramente ao gosto do público, e revelam, algumas vezes, verdadeira inspiração lírica dos poetas, na maioria, anônimos. Amor desprezado, tormentos de ciúme, dores da despedida, são os assuntos da sua musa, e a referência, cheia de fantasia, à natureza, dá a esses desafogos de alma uma trama genuína, tranqüila, que ao europeu parece tanto mais adorável e verdadeira, quanto mais ele mesmo se sentir num enlevo idílico, pela riqueza e o gozo pacífico, proporcionados pela natureza que o cerca.” [1]
Outro trecho oferece um curioso relato da atividade musical, desta vez longe dos salões da sociedade, no sertão da Bahia:
“Embora no coração do sertão, pudemos notar com prazer como o comércio e riqueza já levaram para ali sociabilidade e costumes amenos.”
“Também encontramos aqui entretenimentos musicais, isto onde menos podíamos esperá-los. Um sertanejo, que habitava vinte léguas a oeste de Salgado, e casualmente tinha ouvido falar de nossa prática de amadores de música, mandou um mensageiro, para pedir-nos o prazer de tocar conosco em quarteto. Ao cabo de alguns dias, apareceu o moreno Orfeu das selvas, à frente da mais estranha caravana. Às costas de mulas, trazia ele uma viola, violinos, trombetas, estantes de música, e, como testemunha de sua dedicação, a mulher e os filhos. Dois de seus vaqueiros tocaram as partes secundárias, e, com alegre confiança, atacamos os mais antigos quartetos de Pleyel. Que mais alto triunfo podia celebrar o mestre do que exercer o poder da sua música aqui, no sertão americano? E, com efeito, o gênio musical pairava sobre a nossa tentativa, encantados eram músicos e ouvintes, e tu, excelente melômano, João Raposo, viverás sempre na minha memória, com as tuas feições animadas por triunfante enlevo!”[2]
Também foram escutadas na Bahia “Foi-se Jozino e Deixou-me”, e “Prazer Igual ao que eu Sinto”, a última também escutada em Minas, onde, além desta, foi anotada “No Regaço da Ventura”.
Não há, nos relatos de viagem de Spix e Martius, qualquer referência direta às modinhas e lundus anotados. As transcrições dos trechos do “Viagem pelo Brasil” que fazemos, portanto, buscam tão somente contextualizar estas obras no período em que foram escutadas, sem pretender relacioná-las diretamente às transcrições musicais do Anexo. O trecho seguinte, do qual pequena parte foi citada no início deste artigo, traz rica colaboração para compreender a qualidade da interpretação dos músicos do período:
“Por outro lado, é a música, entre os brasileiros, e, especialmente no Rio, cultivada com mais gosto, e nela se chegará provavelmente a certa perfeição. O brasileiro tem, como o português, fino talento para modulação e progressão harmônica, e baseia o canto com o simples acompanhamento do violão. O violão, tanto como no sul da Europa, é o instrumento favorito; o piano é um dos móveis mais raros e só se encontra na casa dos abastados. As canções populares, cantadas com o acompanhamento do violão, são parte originárias de Portugal, parte inspiradas pela melodia indígena. Pelo canto e pelo som do instrumento, o brasileiro é facilmente estimulado a dançar, e exprime a sua jovialidade nas sociedades cultas com delicadas contradanças; nas classes inferiores, porém, se manifesta com gestos e contorções sensuais como as dos negros. A ópera italiana, até aqui, não tem apresentado, nem da parte dos cantores, nem da orquestra, nada perfeito; uma banda particular de música vocal e instrumental que o príncipe herdeiro formou com mestiços indígenas e pretos, indica bastante o talento musical do brasileiro. D. Pedro, que parece ter herdado de seu avô D. João IV notável gosto pela música, costuma reger às vezes, ele próprio, esta orquestra, que assim estimulada, procura executar as peças com muita perfeição. O discípulo preferido de J. Haydn, o cavalheiro Neukomm, achava-se então como diretor da Capela do Paço, no Rio. Para suas missas, porém, compostas inteiramente no estilo dos mais célebres mestres alemães, ainda não estava de todo madura a cultura musical do povo.”[3][4]
Apesar das insistentes declarações da primazia do uso do violão sobre o piano, as obras presentes no Anexo e editadas nesta Biblioteca vêm todas, com exceção do “Landum”, grafadas com acompanhamento de piano. Acreditamos, respaldados pela opinião de diversos autores, bem como por nossa experiência, descrita na primeira parte deste artigo, que isto se deveu muito mais à necessidade de satisfazer o gosto predominante na Áustria de então, aonde seriam publicadas, que de fato a terem sido ouvidas dessa maneira no Brasil.
Sugerimos, portanto, àqueles que tenham curiosidade de executá-las, que experimentem outras possibilidades de acompanhamento, utilizando, por exemplo, o expediente de cifrar a melodia a partir da harmonia já sugerida nos acompanhamentos de piano, fazendo as alterações que julgarem necessárias. O uso do violão, da viola, da viola caipira e, por que não, do cavaquinho e do bandolim, poderão por certo enriquecer sua execução contemporânea.
REFERÊNCIAS
[1] Spix e Martius, Viagem Pelo Brasil 1817-1820, vol.1, pp. 141-142.
[2] Spix e Martius, op. cit., vol. 2, pp. 93 e 94.
[3] Spix e Martius, op. cit., vol. 1, p. 57.
[4] A citação é, em parte, transcrita por Gerhard Doderer, no prefácio à edição das “Modinhas Luso-Brasileiras”. A diferença entre a tradução de que se utilizou e a que utilizamos é imensa. Tem particular interesse a diferença da tradução do original gitarre, viola, para Doderer, e violão, aqui. A diferença explicita a carência de terminologia de que sofre a organologia dos instrumentos antigos de cordas dedilhadas no Brasil. Se considerarmos que ainda no sul da Europa, onde, de acordo com a transcrição, o “violão” era o instrumento preferido, a transição dos instrumentos de cindo ordens de cordas para os de seis, e ainda, dos instrumentos de cordas duplas para os de cordas simples, não havia se dado completamente, podemos imaginar que no Brasil a confusão fosse ainda maior. (Para uma sugestão de datação da transição das cordas duplas para a simples na Europa, ver CAMARGO, Guilherme de, op. cit., p. 3, nota.)