São transcorridos sessenta anos do acontecimento que marcou época na música carnavalesca carioca: o extraordinário sucesso do samba Pelo Telefone, amplamente documentado pela imprensa de então. Pelo Telefone foi o pretexto principal para uma memória que redigi, metade em Paris e metade no Rio, e que, feita sob a orientação da Profª Claudie Marcel-Dubois, recebeu o "Diplôme" da École des Hautes Études en Sciences Sociales , de Paris. O presente artigo é um resumo de parte dessa memória, que está sendo traduzida para publicação.
Convém assinalar que, num trabalho dessa natureza, o tema é relativamente pouco importante: uma tese sobre a Revolução Francesa pode ser desinteressante, mas uma sobre "a mancha azul na asa esquerda do lagarto antediluviano" pode ser fascinante e altamente estimulante. Pelo Telefone foi, repito, um pretexto, graças sobretudo à discussão sobre sua autoria, que provocou rios de tinta, aos quais o presente artigo pretende acrescentar mais uns litrinhos.
Cabe-me agradecer e prestar homenagem aos que me precederam nessa discussão, e cujas opiniões e informações cotejei com os dados que recolhi, tanto através de pesquisas feitas em cerca de 2. 500 exemplares de periódicos cariocas, datados sobretudo dos meses camavalescos de 1916 a 1918, como graças a informações fornecidas por outros documentos (encontrados na Seção de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional e na Seção de Música e Arquivo Sonoro da mesma biblioteca, no Arquivo Almirante do Museu da Imagem e do Som, no Arquivo Mozart de Araújo) como ainda em função das análises das duas primeiras gravações de Pelo Telefone. Entre esses homenageados, quero citar, muito particularmente, Ary Vasconcelos, Almirante, Jota Efegê.
Abordagem — No momento em que iniciei meu. trabalho, a discussão sobre a autoria do famoso samba podia ser, de modo geral, resumida às teses:
— de Almirante, para quem o texto seria de Mauro de Almeida, e a música composta coletivamente em casa de Tia Ciata (1a ed., p. 17);
— de A. Vasconcelos: a música seria de Donga, os versos, em geral, de Mauro, com a seguinte precisão quanto ao texto (mas também quanto a música? ): a primeira estrofe teria sido levada a Donga por Didi da Gracinda, "conforme depoimento que nos prestou o próprio Donga" (vol. I, p. 19);
— de Tinhorão: Pelo Telefone seria uma obra inteiramente coletiva (Musica Popular, Teatro e Cinema, p. 117).
Duas versões — Embora a análise das dez estrofes de Pelo Telefone ofereça dados e possibilite discussões interessantes, cingir-me-ei a discussão sobre a primeira estrofe. Sua versão original seria uma dessas duas:
(versos) Versão A Versão B
A O chefe da folia O chefe da polícia
B Pelo Telefone Pelo Telefone
C Manda me avisar Manda me avisar
D Que com alegria Que na Carioca
E Não se questione Tem uma roleta
F Para se brincar. Para se jogar.
A versão A não fornece nenhum dado suscetível de ser datado com segurança (deixando-se momentaneamente de lado a interpretação alegórica corrente); ela é a que foi cantada por Bahiano na gravação Odeon nº. 121.322. Sua primeira transcrição na imprensa (seguida de sete das dez estrofes cantadas por Bahiano) foi feita pelo Jornal do Brasil de 18/1/17.
A imprensa de 1917 não registra, uma única vez, a versão B: nem por isso esta é, necessariamente, posterior à outra. É verdade que a primazia da versão A é defendida por Almirante (1ª. ed., p. 20), por Edgar de Alencar (vol. I, pp. 100—101), e mesmo por Donga, tanto em seu depoimento ao MIS (p. 83) como em várias entrevistas. Mas foi o próprio Donga quem afirmou a A. Vasconcelos que a estrofe que lhe foi trazida por Didi da Gracinda (acima referida) era a que constitui a versão B; essa anterioridade da versão B foi reafirmada por Donga em entrevista a E. Sucupira Filho (aproveitada por este jornalista em duas reportagens) e em suas "Memórias", transcritas por Sérgio Cabral na Tribuna da Imprensa. A confusão e, portanto, geral.
"... na Carioca/ tem uma roleta..."
A versão B refere-se a um fato, datado graças a uma feliz descoberta de Jota Efegê: a instalação maliciosa, por alguns repórteres de A Noite, no dia 2/5/13, de uma (e apenas uma) roleta no Largo da Carioca. Tal instalação visava ridicularizar as contemporizações do então chefe de polícia, Dr. Belisario Távora, com o "jogo franco". Antes da descoberta de Efegê, era crença geral que esse fato ocorrera em fins de 1916, e que o chefe de polícia visado era o Dr. Aurelino Leal; o próprio Donga fez declarações nesse sentido. Mas na já citada entrevista a E. Sucupira Filho, Donga indicou — pela única vez, que eu saiba — o nome correto do chefe de polícia "atingido pela roleta". E a pergunta surge, irresistível: Donga ter-se-ia enganado apenas quando mencionou o verdadeiro nome do chefe de policia envolvido na historia? Ou, ao contrário, ele sabia desde o principio que estavam errados os que diziam que tal chefe era o Dr. Aurelino? A questão não e tão bizantina assim: recuar o episódio da roleta de mais de três anos poderia significar também recuar de igual tempo a data possível de composição da primeira estrofe de Pelo Telefone — pelo menos no que se refere à sua parte literária. E Donga era muito esperto.
"pelo telefone oficial"
Almirante afirma que a expressão "pelo telefone", comum às duas versões, refere-se ao "intenso movimento" de combate ao jogo desenvolvido pelo chefe de policia Dr. Aurelino Leal, a partir de documento datado de 30/10/16 e publicado no dia seguinte por A Noite. Por meio desse documento, ele ordenava o envio de ofício "ao comissário do distrito" carioca em cuja jurisdição mais havia "clubs chics" dedicados ao jogo (a região da Av. Rio Branco, em geral), exigindo medidas repressivas contra tais estabelecimentos. O documento em questão traz, porém, uma recomendação curiosa: "Antes, porém, de se lhe /ao comissário/ oficiar, comunique-se-lhe esta minha recomendação pelo telefone oficial". Os cariocas devem ter-se perguntado pela razão de ser dessa recomendação: será que A. Leal estaria indiretamente sugerindo ao comissário que prevenisse os diretores de clubes da chegada próxima do ofício repressivo, a fim de que eles pudessem tomar suas "precauções"?. Essa suspeita poderia ter tornado popular, segundo penso, a expressão "pelo telefone", que se originaria do documento referido, como pretende Almirante.
Os versos — A discussão sobre a antigüidade relativa das duas versões acima transcritas pode ser complementada por uma análise dos textos de ambas as versões. Suas estrofes são formadas por seis versos pentassílabos (com exceção do primeiro, que é hexassílabo). Na versão A, as rimas são entre os versos A e D, B e E, C e F; na versão B, apenas entre C e F. A estrofe de seis versos pode, porém, ser considerada como análoga a uma estrofe de quatro versos. Nesta, quando a origem e realmente popular ou mesmo folclórica, a rima aparece sobretudo entre os versos B e D, equivalentes aos versos D e F da estrofe de seis versos. A versão B seria, pois, mais popular que a versão A, observação que é completada pelo uso do verbo "questionar", verbo difícil, que aparece num tempo difícil, e com a única função de rimar com "telefone".
"Macaco e o outro..."
Em suas declarações a A. Vasconcelos, Donga referiu-se a Didi da Gracinda, ou Didi, personagem que o compositor também mencionou, ao lado de um certo Germano, em suas declarações ao MIS, e em suas "Memórias". Germano era genro de Tia Ciata e ligado ao grupo de Hilário Jovino. O cronista Vaga-lume (Francisco Guimaraes) também afirma, em sua obra fundamental, que havia um certo Didi ligado ao grupo de Hilário, além de referir-se a Gracinda, "uma das mais lindas baianas" (pp. 102 e 132): essa Gracinda era, muito provavelmente, a do Didi da Gracinda.
Ainda em suas declarações ao MIS, Donga afirmou: "A Aciata tinha o 'Macaco é o outro' " (p. 80). Em reportagem sobre a Festa da Penha, aparecida. no Jornal do Brasil de 16/10/16, Vagalume referiu-se às comemorações de domingo 15, falando dos "sambas, batuques e choros" que haviam sido autorizados pelo chefe de polícia Dr. A. Leal, apesar de avisos em contrário. E Vagalume continuava:
"O primeiro grupo (de samba e de batuque) foi organizado em frente a barraca Macaco é Outro... onde o 'tio Ciata' (sic) e a brejeira 'Pequenina' haviam oferecido ao pessoal um suculento angu à baiana com todos os requisitos da terra do vatapá.
Quando se falou no samba, como que por um encanto, surgiram o pandeiro, os réco-récos e formou-se a roda.
O 'macaco sabe-sabe' rompeu o samba:
O Dr. Chefe da Polícia
Mandou me chamar
Só pra me dizer
Que já se pode sambar."
Essa notícia e interessantíssima por vários motivos. Ela narra como acontecia um samba de partido alto, e dá quatro estrofes (apenas a primeira foi transcrita) referindo-se a um problema imediato (a eventual proibição do samba): trata-se, seguramente, de quadras improvisadas no momento, todas com rimas apenas entre os versos B e D. Ela confirma a ligação de Tia Ciata com o Macaco e (o) Outro. Esse grupo e também referido por Vagalume no JB de 2/1/17, com a informação complementar: o apelido Macaco Sabe-Sabe, referido na citação acima, era o de Germano, que, juntamente com Didi e Abut (? ), e mencionado em Na Roda do Samba (p. 96) como um dos diretores do grupo. Deixando de lado outras informações interessantes trazidas pela nota, vamos a primeira das estrofes cantadas por Germano, o Macaco Sabe-Sabe, a quem Donga chamava de Mestre Germano. Os dois primeiros versos correspondem exatamente aos versos A e C das versões A e B; a rima única em ar corresponde exatamente à rima única da versão B, a mais popular em minha opinião. Mestre Germano, amigo de Didi, o qual, conforme Donga, trouxe-lhe a primeira estrofe do Pelo Telefone: a letra só, ou também a música? Provavelmente ambas.
Atestado firmado por Paulo Cabrita e Júlio de Suckow, inscrição no Livro de Registros de Direitos Autorais.
Estaríamos em face de uma "versão primitiva" da primeira estrofe do Pelo Telefone? Tudo leva a crer que sim, apesar de, nesta, os versos serem em maior número, e de A. Leal ser ridicularizado. Note-se ainda a proximidade das datas: a estrofe cantada por Germano é de 15/10/16, e o documento de A. Leal, acima referido, e de 30/10/16. Mesmo que se queira negar uma filiação direta de uma estrofe a outra, e pelo menos necessário acreditar que o tema do "chefe da polícia que manda me chamar" podia ser corrente nos meios populares de então, no Rio, o que, de outra maneira, confirmaria a ligação de Pelo Telefone com a estrofe cantada por Germano, e conferiria a primazia procurada à versão B.
A versão A teria sido feita para a gravação por Bahiano, "para não se criar um caso com a polícia", como pretende A. Vasconcelos (vol. I, p. 20).
A inscrição no registro de direitos autorais — Baseando-me em indicação de Almirante, solicitei, quando estava ainda em Paris, fotocópia da inscrição de Pelo Telefone no Livro de Registro de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional (que será designado por LRDA). O texto do documento levou-me, depois de voltar ao Rio, a procurar, na mesma biblioteca, a partitura manuscrita nele referida, e que foi encontrada na Seção de Música e Arquivo Sonoro. Visitando Almirante, constatei (um tanto a contragosto...) que ele tinha copias tanto desses dois documentos como de outros dois, relativos também à inscrição no LRDA; pedi, então, fotocópia desses dois novos documentos.
À página anterior são reproduzidos três desses quatro documentos. Observe-se imediatamente que o pedido de inscrição, feito a 6/11/16, está em duas páginas, e foi escrito por duas mãos: o primeiro escriba foi quem realmente fez (ou redigiu) a petição, enquanto que o segundo é o próprio Donga, que a ela acrescentou dois adendos, datados, um, do próprio dia 6, outro do dia 20/11/16.
Cronologia — Faço, a seguir, uma cronologia das datas referidas nesses três documentos, às quais acrescento uma data encontrada na partitura manuscrita (que traz apenas a música, e que é "dedicada aos carnavalescos Peru e Morcego") e outras três datas já citadas nesse artigo:
— 15/10/16: Germano canta na Festa da Penha uma quadra que estaria ligada à origem, ou seria a origem, da primeira estrofe do Pelo Telefone;
— 25/10/16: primeira execução publica de Pelo Tele-fone, segundo o atestado (ver página anterior); o segundo acréscimo de Donga à petição (datado de 20/11/16) diz, porém, que Pelo Telefone foi, nesta data, apenas "executado em público";
— 30/10/16: documento de A. Leal contra os "clubs chics";
— 31/10/16: A Noite publica o documento de A. Leal;
— 1/11/16: data encontrada na capa da partitura manuscrita de Pelo Telefone, depositada por Donga, juntamente com a petição, na Seção de Direitos Autorais da BN;
— 3/11/16: "audição oferecida à imprensa", segundo a petição;
— 6/11/16: data da petição (sobre os selos) e de seu primeiro acréscimo;
— 16/11/16: data do atestado, o qual menciona a data de 25/10/16;
— 20/11/16: segundo acréscimo de Donga à petição; data em que é autorizada a inscrição de Pelo Telefone no LRDA (ver o "registre-se", do Diretor da BN, logo acima do carimbo na primeira página da petição);
— 27/11/16: inscrição de Pelo Telefone no LRDA.
Sim, mas porem... — Constate-se inicialmente que, em todos os documentos, o indigitado autor do texto de Pelo Telefone — Mauro de Almeida, apelidado Peru, ou Peru dos Pés Frios — aparece nomeado apenas na dedicatória da partitura manuscrita (que, como a primeira edição impressa, não traz a letra da música), juntamente com Norberto Amaral, o Morcego. Tudo o mais parece ser obra exclusiva de Donga. Digo "parece", pois, como assinalei, o texto da petição não foi escrito (e talvez nem mesmo redigido) por Donga; o mesmo pode-se dizer da partitura manuscrita, como assinala Almirante, na 2ª edição de sua obra. Por outro lado, o fato de Donga apresentar-se como o autor da música de Pelo Telefone não quer dizer que ele o seja.
Analisemos, pois, os documentos. O personagem-chave de toda a trama e Paulo Cabrita, um dos signatários do atestado, nome do cronista Arlequim, que na época escrevia em A Notícia. Pesquisando jornais da época, não encontrei, para o dia 25/10/16 nenhuma referência a uma sessão teatral ou cinematográfica ou musical no Cine Teatro Velo, o que, aparentemente, contraria uma informação capital fornecida pelo atestado. Essa falta de informação não prova nada, pois esse cinema era, conforme informação de Almirante, uma espécie de "cinema poeira". É, pois, possível que nele tenha havido, naquela data, uma sessão qualquer, e que Pelo Telefone tenha sido executado em sua sala de espera (por exemplo). Neste caso, estaria desfeita — pelo menos com relação à parte musical — a ligação pretendida por Almirante entre Pelo Telefone e o documento de A. Leal, que e posterior a data de 25/10/16.
Mas o depoimento de Arlequim é pelo menos estranho. Com efeito, na petição, Donga refere-se a uma "audição oferecida à imprensa" no dia 3/11/16. Por que razão Arlequim não atestou a realização dessa "audição", se ele era reputado cronista carnavalesco? Muito certamente, porque Donga não lhe pediu que atestasse a realização de tal audição, e isto pela muito simples e boa razão que a dita cuja nunca foi realizada. Consultando vários jornais da época (JB, A Rua, A Noite, A Notícia e outros), não encontrei nenhuma menção de tal "audição", o que não é de modo algum lógico.
A menção à data e/ou local de primeira audição era comum nas petições para inscrição de obras musicais no LRDA. Donga devia estar a par dessa norma; em consequência, deve ter "inventado" uma data e local para uma primeira audição de Pelo Telefone.
O raciocínio até agora desenvolvido serve também para infirmar a referenda à "audição" de 25/10/16. O atestado assinado por Arlequim é de 16/11; ele foi entregue (ao que tudo indica) à BN no dia 20/11, e só nesse dia, graças ao dito atestado, foi autorizada pelo Dr. Manuel Cícero a inscrição de Pelo Telefone, no LRDA. É, pois, evidente que, no dia 6/11, Donga deve ter sido instado pelo funcionário da BN, que recebeu a petição, a trazer um atestado provando a realização da "audição oferecida à imprensa", mencionada na referida petição. Sabendo que isso era impossível, Donga deve ter "se virado" do dia 6 ao dia 16/11, ate conseguir que Arlequim e Júlio de Suckow assinassem, de boa fé, o atestado mencionando a audição no Cine Teatro Velo, a qual — na grande noite em que todos os gatos são pardos — poderia muito bem ter ocorrido numa sala de espera de um cinema poeira, mas em minha opinião nunca se realizou.
Com a palavra: Mauro de Almeida!!! — Coisa estranha, Mauro de Almeida parece nunca ter-se interessado em defender seus direitos com relação ao Pelo Telefone. Almirante, seu maior advogado sem procuração, proclamou-o mesmo o "único autor indiscutível" da famosa composição, na 1ª ed. de sua obra; essa opinião não foi, porém, retomada na 2ª ed., pois já então ele conhecia os documentos que darei a seguir, e que descobri na BN.
À página seguinte, transcrevo duas crônicas sobre o Peru, uma de Arlequim e outra de Beléo (cronista de O Paiz), bem como as respostas que lhes deu o amável Mauro.
Antes da publicação da crônica de Arlequim, Chantecler (cronista de O Imparcial) já se havia referido a Mauro como o autor da letra de Pelo Telefone. No dia 23/1/17, foram publicadas pela imprensa tanto a crônica de Arlequim sobre Mauro (onde este nem é chamado de autor da letra de Pelo Telefone), como uma nota por Vagalume, no JB, onde pela primeira vez aparece na imprensa a letra de Pelo Telefone, e onde o Peru e mencionado como seu autor. Pergunta-se: por que razão Mauro escreveu justamente a Arlequim, e não a Vagalume?
Por essa época, como assinala Almirante, a discussão sobre a autoria do famoso samba já devia "ferver" nos meios musicais (1ª. ed., p. 21). Ora, Mauro era amigo de todos. Ele não queria se incompatibilizar com seus amigos, mas também não queria ferir Donga (tanto que o chama de "simpático", com certa condescendência). Declarando-se, porém, apenas o "arreglador" dos versos, Mauro está — quase que diretamente — dizendo que Donga também não passa de um "arreglador" das melodias dessa "composição". A segunda carta de Mauro a Beléo é ainda mais explícita neste sentido; observe-se, aliás, que nela Donga não é sequer mencionado; Mauro devia andar bem irritado com seu "parceiro".
O único cronista que refere ter encontrado Donga junto com Mauro foi, aliás, o próprio Vagalume, em notícia onde, pela primeira vez, é mencionado na imprensa o famoso samba (JB, 8/1/17). Mas, em princípio de Janeiro, a letra ainda não era do conhecimento do grande público — não havia, portanto, razão para quizilas entre Donga e Mauro —, o que pode ser verificado pelos seguintes dados:
— 8/1/17 (JB): Pelo Telefone "já foi distribuído às bandas militares"; trata-se, pois, de versão puramente instrumental;
— 12/1/17 (O Imparcial): um bloco canta 32 versos de 4 sílabas com paródias "da 4ª parte do tango 'Pelo Telefone' ", que é folclórica, conforme atestou o próprio Donga, em verrina dirigida a Almirante (cf. bibliografia);
— 17/1/17 (O Imparcial): Pelo Telefone "está sendo ensaiado já pelas nossas principais bandas militares";
— 18/1/17 (JB): Vagalume anuncia que a letra de Peru "dentro de poucos dias estará a venda";
— 21/1/17 (JB): nos Democráticos, "o samba do Sr. Ernesto Santos, com letra do Sr. Mauro de Almeida, foi o sucesso da noite, pois figurou cinco vezes na estante, sendo sempre bisado.";
— 23/1/17: primeira publicação de 8 das 10 estrofes cantadas por Bahiano, as quais "o Jornal do Brasil oferece hoje aos seus leitores, à guisa de 'furo' "; Arlequim faz o elogio de Mauro em A Notícia.
A origem da irritação de Mauro com Donga pode ser explicada pela própria dedicatória "aos carnavalescos Peru e Morcego", encontrada já na partitura manuscrita de 1/11/16. Qual a razão de ser dessa dedicatória? Aparentemente, trata-se de uma simples homenagem àqueles que eram apontados pela unanimidade da imprensa como os dois maiores carnavalescos. Creio, porém, que Donga via muito mais longe:
a dedicatória já seria parte de um plano, visando levar um dos dois carnavalescos a fazer a letra de Pelo Telefone — pois Donga apenas registrou a partitura para piano, sem letra. Mauro teria mordido a isca, e só mais tarde teria compreendido a arquitetura do piano em que caíra, donde sua irritação com o músico, e o "aviso oculto" do tipo: "cuidado com ele!", que percebo na carta a Arlequim. Com efeito, a essas alturas, Mauro já deveria saber que fora Arlequim o signatário do atestado de 16/11/16, razão pela qual escreveu a este cronista, e não a Vagalume.
Considerações Gerais — Em toda a argumentação até agora desenvolvida, Donga aparece como o vilão da história. Essa aparência não corresponde, porém, a minha opinião: para mim, Donga é sobretudo o autor da história. Se não me engano, foi E. de Alencar quem observou que devemos a Donga a preservação de algumas melodias folclóricas ou populares que, não fora sua reunião sob forma de Pelo Telefone, teriam sido talvez perdidas. Tudo leva a crer, com efeito, que Donga não "criou" as quatro melodias de Pelo Telefone:
— a primeira, muito possivelmente, Ilhe foi trazida por Didi da Gracinda;
— a segunda é praticamente idêntica à primeira (o que se constata por meio de uma análise melódica elementar; ver fig. 1);
— a terceira é o suporte de duas quadras onde a segunda continua a idéia da primeira, num processo tipicamente folclórico; tais quadras referem-se a fato realmente acontecido, conforme informação de Donga a Jota Efegê, e que me foi por este comunicada;
— a quarta é folclórica pelo menos no texto, como já vimos.
Acrescente-se que a introdução é de Pixinguinha, conforme me declarou Lígia dos Santos. E mais do que possível, porém, que a idéia de "costurar" essas quatro melodias (mais a introdução) numa "composição" tenha sido de Donga; mas é naturalmente impossível determinar-se qual a parte do copista da partitura manuscrita nesse trabalho de composição. Assinale-se, porém, que as funções harmônicas reduzem-se praticamente a duas (tônica e dominante), o que de certo modo confirma um caráter folclórico dessas quatro melodias. Mas foi Donga quem lutou pela inscrição da obra no LRDA (coisa que, aliás, muitos compositores já haviam feito), e foi seguramente graças a sua insistência e "caititutagem", ou "planificação", que foram lançadas as gravações pela Banda da Casa Edison e pelo Bahiano, além da partitura impressa. Nem se deve esquecer seu papel na difusão da partitura junto às bandas e choros. Por todas essas razoes, creio que Donga pode ser considerado, com justiça, como o autor — ou "inventor" — de Pelo Telefone. A ele, vencedor, o sucesso e as batatas... "quentes".
I — melodia da 1ª estrofe de Pelo Telefone;
II — melodia da 2ª estrofe de Pelo Telefone;
A e B — indicam, respectivamente, a 1ª e 2ª metades de cada estrofe.
Em ll, B corresponde à melodia tal como foi cantada por Bahiano na segunda gravação de Pelo Telefone; B' corresponde à melodia encontrada nas duas primeiras partituras (manuscrita e impressa) e na primeira gravação de Pelo Telefone, feita pelo Grupo da Casa Edison (apenas instrumental). Observe-se que Bahiano preferiu, em ll B, fazer a segunda voz da melodia original (a de ll B'), no intervalo de 3ª superior, o que é bastante comum em nosso canto, tanto folclórico como popular. . .
E o "primeiro samba"? — É lamentável que, tantos anos passados após a publicação do Panorama de A. Vasconcelos, ainda se repita que Pelo Telefone foi o primeiro samba, ou o primeiro samba gravado, ou a primeira gravação trazendo a menção "samba". Nessa obra, com efeito, são atestadas duas gravações feitas antes de 1917, e trazendo tal menção (p. 18).
Em seu Maxixe, Jota Efegê repertoriou outras menções a samba, feitas desde 1876 (pp. 27, 55, 161). Nas colunas carnavalescas de oito jornais de 1916, encontrei apenas três dessas menções; em 1917, elas já são 22 (com exceção das feitas a Pelo Telefone e as suas parodias), passando para 37 em 1918. Esse aumento de menções a samba pode ser considerado como uma decorrência do sucesso de Pelo Telefone em 1917, mesmo se considerarmos que essa composição foi também designada como tango, tango-samba-carnavalesco, modinha, canção. Mas o JB de 5/2/16 já anunciava "sambas carnavalescos" num baile no Teatro República (pagina de anúncios), e A Noite de 29/2/16 refere ter recebido "vários sambas" compostos para o carnaval e dedicados aos Fenianos aos Democráticos. Mesmo uma revista musical intitulada O Samba, de Álvaro Colas e Ataliba Reis, musica de Paulino do Sacramento, teve sua estréia a 13/12/16, no Teatro Politerpsia, em Niterói; não conheço, aiás, nenhuma referência a essa revista. Segundo J. Blanco, do semanário Theatro e Sport (16/12/16), seu enredo girava em torno do "samba do norte", embora não faltasse referenda ao... "samba japonês"! Havia, também, menções a samba nos anúncios e críticas da revista Morro da Favela, estreada a 8/2/16, música de Jose Nunes.
A menção "samba carnavalesco" encontrada em Pelo Telefone não constituía, pois, uma novidade no meio musical, embora também não fosse corrente.
Mas é preciso determinar de que samba se fala. Mesmo quando as menções anteriores a essa obra referem-se, claramente, a um "gênero", mesmo assim não e possível dizer-se "como" e esse gênero.
Por que razão Donga teria denominado sua produção musical de "samba carnavalesco"? Creio que a razão dessa qualificação deve ser buscada nas significações usuais que o termo samba tinha na época, e não com relação ao "samba urbano" anunciado (talvez) por Sinhô. Em fins de 1916, samba designava, de modo geral:
— uma festa ou baile;
— um divertimento coreográfico-musical-literário, estribado na forma "estrofe cantada por solista/ refrão cantado pelo coro", a que chamamos geralmente de samba de partido alto, mas que também se encontra na capoeira, na batucada (no sentido de "luta atlética", e não no sentido que esse termo tomaria depois de Na Pavuna, segundo Almirante).
O samba Pelo Telefone corresponde — em minha opinião — a um samba-festa, durante o qual fossem cantados vários sambas-divertimento, estes sempre em duas partes (estrofe/refrão). Um samba-festa não poderia viver de, apenas, um samba-divertimento, pois senão ficaria monótono. Na própria estrutura de Pelo Telefone temos: a introdução (que não havia nos sambas-divertimento, e que é um acréscimo "civilizador"); a primeira e segunda partes formando um bloco que configura claramente um samba-divertimento; a terceira e quarta partes formando outro samba-divertimento. Pelo Telefone corresponde, pois, com suas 2 mais 2 partes, a uma "transcrição abreviada" de um samba-festa, posto em pauta e executado (tanto nos dois discos pioneiros como, seguramente, pelas bandas e por boa parte dos choros da época) em ritmo amaxixado. A grande contribuição de Pelo Telefone para a história do "samba urbano" foi a divulgação do termo samba entre a classe média carnavalesca, que passou a aceita-lo em função do sucesso da composição de Donga. Mesmo essa explicação, já proposta em linhas gerais por Sergio Cabral (Realidade, p. 70) não é, porém, suficiente, pois a classe média poderia muito bem ter aceito a música e rejeitado a "marca" que até então rejeitara. Houve, pois, uma evolução no comportamento dessa classe, permitindo-lhe aceitar a menção samba; essa evolução deve ser analisada em função de uma modificação mais profunda ocorrida nas camadas sociais cariocas por volta de 1917.
O samba urbano originar-se-ia do samba de Sinhô, e do que teria sido anunciado por sambistas do
Estácio, conforme pretende Sérgio Cabral (As Escolas de Samba..., p. 21 ). Ele é sempre em duas partes, e vai afastar-se cada vez mais, durante a década de 30, do samba-divertimento, onde as estrofes do solista referem-se a episódios do quotidiano expressos em versos não lapidados; nesse tipo de samba, que é claramente -folclórico, as estrofes não tem ligação necessária uma com a outra (quanto a seu texto), sendo cantadas num estilo quase parlato. O samba urbano constituiu-se basicamente como canção (não confundir com samba-canção!), incorporando o espírito modinheiro presente na "música chorada" às estre-polias do maxixe "civilizado" e às batidas dos blocos transformados em escolas de samba, bem como dos efeitos do que na" época se entendia por jazz, e cantando em geral uma história com começo e fim, onde o coro aparece mais como reforço do solista do que como elemento imutável oposto ao elemento mutável (ao solista do samba de partido alto); o coro pode até mesmo nem aparecer. E o solista vai cada vez mais "cantar", e cada vez menos "parlar".
Constitui, pois, um equívoco afirmar — como se faz com demasiada frequência — que "o samba veio da África", ainda mais que o conhecimento efetivo de musica negro-africana. (e não apenas "africana", pois na África também há árabes), no Brasil, é pouco mais do que nulo. Seria preciso, primeiro, dizer de que samba se está falando, para depois afirmar tal origem: do samba rural ou do samba urbano? A presença negro-africana é bastante clara em vários dos sambas rurais. No samba urbano, ela é muito mais tênue, podendo ser até nula: não vejo nenhum traço negro-africano na gravação de Ultimo Desejo feita por Aracy de Almeida, em 1937 (se não me engano). A passagem do samba rural para o samba urbano implicou em uma mudança fundamental: da dança em círculo, que não saía do lugar, passou-se à "marcha sambada" das escolas, e ao "samba de pares enlaçados" dos salões e gafieiras. Parece claro que a marcha sambada deva ter incorporado passos do rancho; em todo caso, as exibições de passistas muitas vezes obrigam-nos, ainda hoje, a dar uma parada na avenida para mostrar os passos mais tradicionais do samba. Por outro lado, o samba de salão iria incorporar passos do maxixe, e mais tarde de outras danças. Em seu livro sobre as escolas de samba, Sérgio Cabral narra um dialágo interessantíssimo entre Donga e Ismael, sobre qual seria o verdadeiro samba. Donga afirma que é o Pelo Telefone e Ismael declara que esta música é um maxixe; Ismael afirma que é Se você jurar, que Donga declara tratar-se de marcha. Ora, ouvindo-se as gravações originais de ambas as músicas, não resta dúvida que ambos os compositores têm razão — só que Ismael está com a maior parte da verdade (em minha opinião), se se entende como samba o samba urbano. É certo que, até 1922 pelo menos, as músicas dançadas durante os desfiles de ranchos e de blocos eram sempre denominadas marcha, e às vezes chula; até valsas eram arranjadas como marcha para tais desfiles, o que é atestado pela imprensa de 1917. E Vaga-lume não estava errado ao designar como marcha, em seu livro, músicas que já em sua época eram também rotuladas como samba. Mas essas observações colocam inúmeras perguntas cujas respostas deveriam partir de análises acuradas de documentos da época — inclusive de gravações. Uma dessas perguntas é sobre o papel efetivo do surdo na orquestra dos blocos: sua introdução apenas serviu para marcar o compasso, ou tal marcação não teria, pouco a pouco, organizado diferentemente as demais percussões em torno de um binário antes latente, agora patente? Já se escreveu alguma coisa sobre o papel disciplinador dessa batida do surdo — papel profético, auto-imposto e anunciador tanto da disciplina sindical que alguns anos mais tarde seria imposta de cima para baixo como da oficialização de enredos patrioteiros — mas nada se disse (ao que eu saiba) sobre a importância especificamente coreográfico-musical dessa batida.
A guisa de conclusão — Nesse artigo, não dou importância especial à casa de Tia Ciata para o surgimento de Pelo Telefone. Isso se deve ao tipo de documento em que me baseei, e ao tipo de analise que fiz. Em minha opinião, o aparecimento de Pelo Telefone deve-se, fundamentalmente, à decisão de Donga de "com-por" as quatro partes mais a introdução (ou talvez, de compor dois blocos, formados cada um por duas partes), de inscrever a composição resultante no LRDA, de fazer uma partitura impressa, de divulgar a obra entre as bandas (principais meios de difusão para a música carnavalesca de então), de gráva-la em discos, de difundir a partitura e a letra.
Não estou seguro de que a letra adaptada por Mauro de Almeida tivesse sido realmente importante para o sucesso de Pelo Telefone. A difusão de letras fazia-se tanto pela imprensa como por folhetos vendidos por camelôs, como até mesmo pelo disco. Ora, suponho que Vagalume não iria dar a letra, em furo, no dia 23/1/17, se ela estivesse sendo divulgada há muitos dias por discos e por camelôs — a menos que tal furo se referisse apenas à publicação pelos jornais, o que me parece pouco provável. Pode-se presumir, pois, que o lançamento do disco cantado por Bahiano tenha ocorrido por volta do dia 20/1. É, por outro lado, significativa a ausência total de referências, na imprensa de 1917, aos discos gravados pela Banda da Casa Edison e pelo Bahiano. Essa ausência parece indicar claramente que ambos os discos não tiveram papel importante na difusão de Pelo Telefone. Historicamente, não é, pois, justificável a importância atribuída particularmente à gravação por Bahiano para a difusão ou para o surgimento do samba
— ainda mais que Pelo Telefone, como já vimos, não é um samba no sentido que esse termo tomaria alguns anos depois.
Creio que Almirante tinha razão, quando me afirmou que Pelo Telefone fora um sucesso enorme, mas efêmero. O numero de menções a essa obra, na imprensa de 1918, é quase igual ao numero de menções a Cabocla de Caxangá, em 1917. Ora, foi em 1914 que a Cabocla fez furor no carnaval; portanto, ela foi um sucesso mais durável que Pelo Telefone, se se aceifa que o número de menções na imprensa é um índice valido para a aferição do sucesso de uma composição.
A partir de uma época que ainda não determine!, Pelo Telefone foi tirado do esquecimento por estudiosos do samba, que viram nas duas gravações pioneiras as duas primeiras gravações de samba, ou as gravações do primeiro samba, etc. Não creio que Donga tenha tido alguma parte nessa exumação. Mas o assunto era bom; sua exploração por jornalistas apressados e por pesquisadores pouco atentos foi inevitável. Veio Almirante e jogou mais lenha na fogueira: "Pelo Telefone não e de Donga!". E Donga que responde a Almirante (cf. bibliografia), lembrando — com inteira justeza — que não havia nenhuma prova de que Mauro de Almeida fosse o autor "indiscutível" de Pelo Telefone, e que apenas ele, Donga, podia afirmar — como afirmava — que Mauro era, de fato, o autor da letra. Mas, a essas alturas, Mauro já tinha morrido (faleceu em 1956), e suas cartas a Arlequim e Beléo jaziam nas coleções da Biblioteca Nacional.
Restavam os depoimentos de outros músicos da época, que preferiam muitas vezes não se manifestar para não ferir Donga: era o caso de Pixinguinha, que, segundo me informaram, sempre desconversava quando se tocava no assunto. Preferi, porém, evitar recorrer a tais depoimentos, tanto pela razão já citada como pela possibilidade de os depoentes "enriquecerem" (voluntariamente ou não) a memória de fatos passados há tantos anos. Os "depoimentos" que recolhi na imprensa carioca fornecem dados congelados, que podem, porém, ser "aquecidos" por uma análise crítica, levando a deduções, induções e conclusões estabelecidas sobre bases relativamente mais seguras, embora necessariamente incompletas. De qualquer forma, não pretendi, em nenhum momento, transformar minhas opiniões em "verdades científicas, estabelecidas graças à utilização de métodos rigorosos", etc. Nem por isso acho que falte rigor as minhas conclusões; é, porém, necessário vê-las de maneira global, e não parcelada: somente assim umas conclusões apoiarão as outras, embora umas se inspirem nas outras. Parece, com efeito, evidente que a maioria das conclusões a que cheguei não se baseiam em "provas cabais, irretorquíveis", mas em deduções e induções supondo, por sua vez, uma visão global à qual só me foi possível chegar através do trato contínuo com o material pesquisado e analisado.
Sentir-me-ei satisfeito se, da história que conto, for dito: "si non è vero, è bene trovato"
NOTAS
1. Salvo menção em contrário, todas as referencias à imprensa dos anos 1916 a 1918 dizem respeito às seções carnavalescas aparecidas nos jornais cariocas publicados de Janeiro a fevereiro ou marco. De 1917, foram consultados os jornais: Correio da Manha, Gazeta de Notícias, O Imparcial, Jornal do Brasil, A Noite, A Notícia, O Paiz, A Rua, A Época, Jornal do Commercio (ed. vespertina), A Razão, A Tribuna; de 1916, os mesmos, menos os quatro últimos; de 1918, os mesmos de 1916, menos o Correio da Manhã, que foi substituído por A Época.
2. O depoimento de Donga ao Museu da Imagem e do Som (MIS) é acompanhado de notas redigidas por Antônio Barroso Fernandes e por Lígia dos Santos, filha do compositor, a qual me afirmou serem autênticas as "Memórias" publicadas por S. Cabral.
3. O jornal O Commercio, de Niterói, publicou nos dias 25 e 28/11/16 uma coluna humorística intitulada: Pelo Telefone,
4. Lúcio Rangel parece sugerir que o sucesso "enorme" de Pelo Telefone estaria ligado a "duas autênticas novidades": o telefone e o samba (36). Ora, o telefone já não era nenhuma novidade, em 1916, para os cariocas, que no ano anterior possuíam 11.183 aparelhos (cf. Matheus, pp. 45-88), desde pelo menos 1913 já apareciam em jornais do Rio reportagens sobre as condições de trabalho das telefonistas. Quanto ao samba, a novidade é outra, como veremos. Constatando-se o número de telefones em 1915, tem-se a impressão de que a expressão "pelo telefone" poderia ser bem anterior a 1916. Completando informação de Almirante, na 1ª ed. de sua obra, esclareço que a campanha de A. Leal contra o jogo foi para valer; ela pode ser considerada como um dos responsáveis pelo agravamento da situação das sociedades carnavalescas em 1917 e 1918, conforme queixas publicadas pela imprensa.
5. E. de Alencar, numa das reuniões do 2º Encontro de Pesquisadores de MPB, criticou essa afirmação, dizendo que a estrofe cantada por Germano nada tem a ver com Pelo Telefone. Infelizmente, ele não aduziu nenhuma prova, ou pelo menos argumentação válida, em favor do que disse.
6. Eis uma quadra de um samba de Didi, citado por Vagalume (p. 96), sem menção de data: "Baiana do outro mundo / Eu sinto a perna bamba / O meu prazer é profundo / Aqui na roda de samba". Essa quadra é muito semelhante aos versos: "Porque este samba / De arrepiar / Põe perna bamba / Mas faz gozar", cantados nas duas estrofes que formam a 4ª parte de Pelo Telefone. Tratar-se-ia de outro leit-motiv para textos de sambas de partido alto?
7. Convém assinalar que Almirante não conhecia esses documentos, quando lançou a 1ª ed. de sua obra; a 2ª ed. os menciona, sem analisá-los com mais vagar, em minha opinião.
8. A menção: "Docto. junto" encontrada na petição, refere-se seguramente à partitura manuscrita, e não a um hipotético atestado de realização de tal "audição oferecida à imprensa", atestado que não foi encontrado entre os documentos relativos à inscrição de Pelo Telefone, no LRDA.
9. Foi entre a publicação da primeira e da segunda carta de Mauro que ocorreu a publicação, pelo JB de 4/2/17, da nota do Grêmio Fala Gente, transcrita por Almirante, e por meio da qual vários músicos (Sinhô, João da Mata, Hilário, Tia Ciata, Mestre Germano) estariam reclamando a autoria de Pelo Telefone. Em minha opinião, tal grêmio nunca existiu: ele é citado apenas uma vez numa única edição de um único jornal — o JB. Ora, quem já fez pesquisas em jornais sabe que qualquer grupo chinfrim é, em geral, referido por vários jornais, do mesmo dia ou de dias diferentes. Nem é crível que um grupo formado por um time de tal qualidade, e tratando de um assunto de tal relevância (visto o sucesso enorme que Pelo Telefone já conhecia), fosse visitar apenas o JB, ou fosse apenas por ele noticiado. O mais lógico e supor que Vagalume, o cronista do JB, tenha "inventado" o grupo e a nota, após ouvir várias pessoas, para fazer os outros dizerem o que ele não queria pessoalmente dizer. É evidente que essa observação não invalida em nada a importância da nota em questão para o esclarecimento da história de Pelo Telefone.
10. Esclareço que nenhuma outra notícia sobre Pelo Telefone foi encontrada, do dia 1º ao dia 23/1, nos 12 jornais, de 1917, pesquisados.
11. Na primeira partitura impressa, gravada possivelmente a 16/12/16, também não consta a letra cantada por Bahiano.
12.Segundo B. Fausto: "O avanço do movimento operário nos anos 1917/1920 coloca pela primeira vez a 'questão social' na cena política". Em suas Memórias, Donga referiu-se à necessidade, experimentada por ele e por alguns amigos, de "introduzir o samba na sociedade", isto é, segundo penso, na classe média.
13. A morte de Juarez Barroso privou-nos de conhecer (pelo menos, por enquanto) as conclusões a que chegou após pesquisas feitas no Estácio.
14. O próprio Pixinguinha declarou que uma das designações de Carinhoso — a de "samba estilizado" — fora posta "para fins comerciais" (MIS, p. 37). Considero que Carinhoso tem três partes.
15. O caráter geral dessas observações não pode ser deixado de lado. Nem por isso compreendo como Sérgio Cabral conseguiu afirmar, à mesma pagina do artigo citado: "A partir de Pelo Telefone, o samba virou moda e entrou na sociedade de consumo". De fato, entre 1917 e 1921, samba passou a designar simplesmente "música de sucesso para o carnaval", o que está perfeitamente documentado por E. de Alencar; entre esses sucessos, havia legítimas marchas.
16.A pedido de Donga, a Gazeta de Notícias de 25/1/17 publicou a seguinte nota sobre a partitura do "maravilhoso tango 'No Telefone' " (sic): "Está à venda unicamente na Casa Edison e o autor pede-nos declarar que os demais porventura à venda em outras casas e com o mesmo título não são de sua lavra." Ver a respeito do que considero plágios de Pelo Telefone a 2ª ed. de No Tempo de Noel Rosa.
17. Nunca é demais lembrar a impressão que D. Milhaud (recém-desembarcado no Rio para trabalhar na embaixada da França, sob as ordens do então embaixador Paul Claudel) recebeu do carnaval carioca: "Mon contact avec le folklore brésilien fut brutal; j'arrivai à Rio en plein Carnaval et je ressentis aussitôt profondément le vent de folie qui déferlait sur la ville entière. (...) Le public danse et chante avec passion pendant six semaines; parmi toutes ces chansons, il y en a toujours une qu'il préfère et qui, de ce fait, devient la 'Chanson du Carnaval'. C'est ainsi qu'en 1917, broyée par les petits orchestres devant les cinémas de l’Avenida, interprétée par les musiques militaires, les orphéons municipaux, rabâchée par les pianos mécaniques, les gramophones, pianotée, sifflotée, chantée tant bien que mal dans toutes les maisons: 'Pelo Telefono' (sic), la Chanson du Carnaval de 1917, éclata dans tous les coins et nous hanta pendant tout l’hiver." (pp. 79-80).
18. Este artigo já estava escrito quando ouvi o fino ironista Glauber Rocha, comentando seu Di Cavalcanti, declarar na televisão: "O tema não e importante, o importante é o método".
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