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O Fundo Vicente Salles

25/04/2023 - Jonas Monteiro Arraes

Artigo gentilmente elaborado para o portal Musica Brasilis pelo Prof. Dr. Jonas Monteiro Arraes1

A Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará tem sob sua guarda a Coleção Vicente Salles, abundante fonte de pesquisas sobre Cultura Popular, Música, Cultura afro-brasileira, História, Teatro e Literatura.  

Para falarmos desse importante acervo, se faz necessário apresentar alguns aspectos do pesquisador Vicente Juarimbu Salles.

     Vicente Salles (1957) - Acervo da família

Vicente Juarimbu Salles (1931-2013) foi um musicólogo atuante por décadas, embora não tenha sido conhecido como tal nessa área da música. Os métodos utilizados por Salles na produção de seus trabalhos escritos, são compatíveis com as disciplinas da musicologia e da etnomusicologia, nos apresentando caráter metodológico pioneiro, em suas pesquisas.

 O seu artigo, em parceria com Marena Salles,  “Carimbó: trabalho e lazer do caboclo” (1969), seu livro “Lundu: canto e dança do negro no Pará” (2016) e outros tantos escritos que investigaram profundamente a música desenvolvida (sobremaneira) na Amazônia2, em conjunto com diversos textos e trabalhos versando sobre a música universal, corroboram com o que diz Kerman (1987): “ ‘O musicólogo é, em primeiro lugar e acima de tudo, um historiador’, citando Palisca, e complementa: um historiador em seu papel de cronista ou arqueólogo, muito mais do que no de filósofo ou intérprete de culturas do passado”.

 Vicente Salles foi reconhecido como folclorista, jornalista e historiador. Sua obra confere autenticidade à essas denominações laborais. Nas suas atividades pesquisatórias, ao longo de mais de cinco décadas, Salles usou o processo de coleta-coleção-tratamento-difusão, onde cada etapa sofria uma intervenção adequada ao material que obtinha acesso. A coleta se dava em vários espaços, tais como teatros, igrejas, clubes e associações, casas de particulares, lixo etc. Onde houvesse algum documento que pudesse contribuir com a “difusão de conhecimentos”, a última etapa desse rigoroso processo, lá estava o arguto pesquisador.

A coleção que leva seu nome foi adquirida pela Universidade Federal do Pará em 1993, estando, desde então, disponibilizada ao público. A partir desse preciso material, Salles produziu muitos textos e os publicou em forma de livros, artigos e opúsculos diversos, tendo distribuído generosamente, ao fim das suas palestras, alguns desses trabalhos, denominados de Micro-Edição do Autor.

Como parte dessa grande coleção de documentos diversos, pertencentes à Biblioteca do Museu da UFPA, estão centenas de partituras, escritas por compositores em sua maioria paraenses, ou residentes no Pará, além de muitos estrangeiros que aqui viveram e trabalharam, publicando nesse estado e em outros lugares.  Esses documentos assentados em suporte de papel, muitos com capas litografadas e impressas no Pará, em outros estados brasileiros e na Europa, são registros de épocas áureas da história da música paraense e brasileira. No acervo de partituras encontram-se muito exemplares de obras editadas em outros estados brasileiros ou países, que circularam no mercado musical nortista, tendo várias delas a presença dos selos das editoras ou casas comerciais, comprovando o consumo local desse material, principalmente na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do XX.

Esses documentos, denominados de várias formas, tais como partituras, peças, obras ou grades, quando se trata da partitura do regente de coro, orquestra ou banda, falam àqueles que lhes olham, através de mensagens das mais diversas, sendo que a principal é a constituída de símbolos representativos da escrita musical, que decodificados, tornam-se “sons humanamente organizados” (BLACKING, 1973), ou seja, música. Concordando com John Blacking, as partituras resultam em música, seja através de uma performance ao vivo ou da apreciação de uma gravação. Informa-se, complementarmente, que atualmente, programas de edição de partituras simulam performances interpretativas apreciáveis e úteis, na ausência de uma execução humana.

A difusão do Acervo

No segundo semestre do ano de 2022, o Instituto Música Brasilis assinou um Acordo de Cooperação com a Associação dos Amigos do Museu da UFPA, representante do Museu da Universidade Federal do Pará, para regular as relações de cooperação no que se refere à execução do projeto denominado ACERVO DIGITAL DE PARTITURAS BRASILEIRAS – PRONAC 186236. O objetivo central do Acordo pretendeu gerar partituras digitais, disponibilizadas gratuitamente, com fins de difundir os repertórios musicais nela existentes, assim como colaborar com sua preservação. As partituras digitais seriam produzidas a partir de seleção de obras brasileiras em domínio público, parte do Fundo Vicente Salles, pertencentes à Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) e de outras instituições parceiras do projeto.

Assinado o Acordo, foi convidado para coordenar as ações o Prof. Dr. Jonas Monteiro Arraes, musicólogo e docente da Universidade do Estado do Pará – UEPA, experiente pesquisador e profundo conhecedor do Fundo Vicente Salles. Após a aprovação de um Plano de Trabalho apresentado pelo musicólogo, uma equipe, sob sua coordenação, iniciou os trabalhos no mês de outubro de 2022.

A equipe, composta por uma historiadora, higienizador e fotógrafo, bibliotecárias, editoradores de partituras e um revisor e assistente técnico, produziram até o final do mês março de 2023, 413 obras higienizadas, fotografadas, editoradas e disponibilizadas no portal do Instituto Musica Brasilis. O processo de intervenção nessas obras impressas, produziu resultados conexos de grande importância histórica e musicológica, tais como: metadados, levantamento de biografias, imagens de capas litografadas em alta resolução, estatísticas, dentre outros produtos.

A disponibilização deste material, feita através do site Musica Brasilis 3, propiciará aos pesquisadores de várias áreas, como sociologia, história, antropologia, geografia, semiótica, publicidade, entre várias outras, conhecer parte da historiografia do Norte do Brasil, principalmente no período imperial e republicano, com foco na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do XX, tempo onde circulava na Amazônia grandes somas de recursos financeiros, importando costumes, arte e conhecimento, sobremaneira na capital do Pará, Belém, “que entrava na belle époque da borracha, o seu consumo pode ser avaliado por um outro indicador: os estabelecimentos tipográficos que imprimiam partituras e as casas comerciais  que as importavam dos grandes centros europeus (Coelho,1995, p. 110).

Alguns compositores e compositoras paraenses, citados aqui, principalmente os que viveram na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, estudaram no Pará, na Europa e na capital do Império/República. Esses músicos conviveram com os estrangeiros que chegavam com as companhias viageiras, vindo nos barcos a vapor, trazendo orquestra, cantores, bailarinos, pessoal de apoio, cenários, figurinos e tudo o mais necessário para montar óperas, operetas ou de teatro de revista. O Conservatório de Música da Academia de Bellas Artes, seção da Associação Paraense Propagadora de Bellas Artes, surge nesse contexto, tendo sido inaugurado em 1895. Entre tantos músicos que por Belém passaram, está Antônio Carlos Gomes. Gomes veio ao Pará em quatro ocasiões, sendo a última em 1896, quando assumiu a direção do Conservatório de Música do Pará, mas ficou por pouco tempo devido ao seu falecimento em setembro daquele ano. Desde 1882, Carlos Gomes fez viagens a Belém, trazendo músicos e músicas. Sua influência repercute até os dias de hoje, estando o Conservatório que leva seu nome, atualmente, em plena atividade.

Um dos objetivos do Acordo de Cooperação, assinado entre o Instituto Música Brasilis e o Museu da UFPA, é difundir o repertório musical que, até a assinatura do convênio, estava guardado e preservado em gavetas de um arquivo deslizante. Atualmente, o público especializado ou diletante, pode acessar gratuitamente esse valioso material.

No Fundo Vicente Salles estão guardadas partituras de muitos compositores paraenses, brasileiros e estrangeiros que viveram no Pará, ou que foram publicadas ou comercializadas nas casas comerciais de Belém. No site do IMB já se pode encontrar, facilmente, várias dessas obras.

São muitos os compositores e compositoras que fizeram parte da cena cultural de Belém, no período compreendido entre o fim da revolta popular da Cabanagem (1835-1840) até meados do século XX. Destacamos alguns, que já estão com suas obras editadas e disponíveis no Portal do Instituto Musica Brasilis:

Henrique Eulálio Gurjão (1834-1885): Compositor paraense, estudou com o organista e pianista português João Nepomuceno de Mendonça, que chegou ao Pará no ano de 1842, logo após o fim da Cabanagem. Gurjão foi mestre da primeira escola de composição paraense, desde Nepomuceno de Mendonça, formando vários discípulos que, seguidamente, formaram outros, num percurso histórico, que, em parte, explica a tradição musical paraense. Abaixo um exemplo de uma obra de Gurjão presente no Portal do IMB:

A Partida (La partenza – Canzone per Tenore o Soprano). Disponível em: /partituras/henrique-eulalio-gurjao-partida

José Domingues Brandão (1855-1941): Estudou com Henrique Gurjão. Produziu importantes obras, tendo tido uma longa vida musical. Foi um dos músicos que reinstalaram o Instituto Carlos Gomes, em 1929, que havia sido extinto em 1908.

Conheça uma obra de Brandão presente no Portal do IMB: O Dia Paraense. Obra sinfônica que descreve um dia na cidade de Belém, narrando com sons o decorrer do dia e a movimentação urbana do início do século XX. Disponível em: /partituras/jose-domingues-brandao-o-dia-paraense

Clemente Ferreira Junior (1864-1917): Um dos mais importantes compositores do período da belle époque, Ferreira Junior tem várias obras no Portal do IMB. As fontes consultadas relatam a amizade de Ferreira Junior com Carlos Gomes, que foi padrinho de um filho de Clemente, tendo comparecido ao batismo na Igreja de Nazaré, em 1896, quando de sua última estada no Pará.

Obra disponível do Site do IMB - Não tenhas medo (Schottisch para piano). Disponível em: /partituras/clemente-ferreira-junior-nao-tenhas-medo

Maria Amanda Tenreiro Aranha (1886-1907): Pianista e compositora. Tida como “menina prodígio”, desenvolveu muito cedo aptidões musicais. Estudou no Instituto Carlos Gomes (Belém) piano, canto, harpa, matérias teóricas de harmonia e composição. Passou pelas classes de Meneleu Campos (composição), Esmeralda Cervantes (harpa), Virgínia Sinay (canto) e Clemente Ferreira Junior (piano) (Salles, 2016, p. 85).

Conheça uma obra de Maria Amanda Tenreiro Aranha - Sursum Corda. Disponível em: /partituras/maria-amanda-tenreiro-aranha-sursum-corda

Cecilia Iêrêcê de Lemos (1873-1921): Pianista e compositora. O pai, Antônio José de Lemos, velho oligarca que governou Belém durante muitos anos, amante da música, proporcionou-lhe sólida formação musical. Estudou com Amélia Schussler, Agostinho Medeiros, Idalina França e Clemente Ferreira Junior. Com Virgínia Sinay Bloch estudou canto e violino. A Valsa Artes e Officios da Amazonia, composta para festejar a Exposição do Liceu de Artes e Ofícios Benjamim Constant, recebeu elogios públicos de Carlos Gomes e foi por ele instrumentada (Salles, 2016, p.322).

Conheça a Valsa de Iêrêcê de Lemos - Artes e ofícios da Amazonia. Disponível em: /partituras/cecilia-ierece-de-lemos-artes-e-oficios-na-amazonia

Outra composição da autora disponível no portal: A Província do Pará (Valsa para Piano) - /partituras/cecilia-ierece-de-lemos-provincia-do-para

Referências

BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle: University of Washington Press, 1973. 116 p.

COELHO, Geraldo Mártires. O brilho da supernova: a morte bela de Carlos Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 1995.

SALLES, Vicente. Música e Músicos do Pará. Coordenação de edição: Jonas Arraes. 3ª Ed. Ver. Belém: FCP, 2016.

Notas

1 Doutor em musicologia histórica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor aposentado da Fundação Carlos Gomes. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Membro efetivo da Academia Paraense de Música e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Pesquisador associado ao Grupo EMPODERA (Educação Musical, Políticas, Decolonialidades e Resistência) da UEPA.

2 Cito aqui, à guisa de exemplo, alguns trabalhos: “A Modinha no Grão-Pará: estudos sobre ambientação e (re)criação da Modinha no Grão-Pará”; “A Música e o Tempo no Grão-Pará”; “Repente & Cordel: literatura popular em versos na Amazônia”.

3 O portal / é desenvolvido pelo Instituto Musica Brasilis. Criado em 2009, o portal Musica Brasilis tem como missão o resgate e difusão de repertórios brasileiros de todos os tempos, em grande parte inacessíveis por falta de edições. O acervo, constituído por mais de 2.500 partituras de compositores brasileiros, é mensalmente consultado por 45.000 usuários de todo o mundo. O projeto Acervo Digital de Partituras Brasileiras, com duração prevista até 2024, tem como objetivo dar acesso livre e aberto a edições de 5.000 partituras de compositores brasileiros em domínio público através da web. (informações retiradas do portal). Em setembro de 2022, foi assinado um termo de cooperação entre o Instituto Musica Brasilis e a Associação dos Amigos do Museu da UFPA. O musicólogo Jonas Arraes foi convidado para coordenar uma equipe para a realização de tratamento, levantamento histórico e edição das partituras do acervo, por um prazo de um ano.