Recentemente, tive uma curiosa conversa com um renomado compositor brasileiro. Ele me afirmou que no Brasil não havia mais preconceito contra a mulher e enfatizou – “principalmente no meio musical”… Eu arrisquei – é porque você não usa saias… Mas ele nem me ouviu e continuou – “veja quantas pianistas, cantoras atuando com sucesso…”.
Eu retruquei: é obvio que a intérprete mulher, depois do final do castrato em 1870, firmou seu lugar como cantora lírica, além do mais, a intérprete executa o pensamento do compositor. Mas, e as compositoras, as mulheres regentes que devem impor sua estética ao universo masculino?… Ele continuou inabalável: ora, a Ligia Amadio está aí regendo e fazendo um movimento bem-sucedido em prol das regentes mulheres! Eu ainda insisti – então, por que você não faz um movimento em prol dos homens compositores? Vocês não precisam?
Vale a pena lembrar que a Ministra Cármem Lúcia disse em sua posse: “Há discriminação contra a mulher, mesmo juíza”.
A mulher representa a maioria da população mundial e continua a ser minoria em posições de poder. Atualmente, de 196 países, 22 – ou 11% – são governados por mulheres. Não deixa de ser um avanço real. Mas o cotidiano dos gêneros continua muito desigual.
Em todo canto, nós continuamos a ganhar menos que os homens fazendo o mesmo trabalho. Até na Bélgica, um país onde o abismo entre os gêneros é menor, homens recebem 9% a mais pelo mesmo trabalho. E no Oriente? Japoneses ganham 30% a mais que suas compatriotas. Na Coréia do Sul, 40% a mais. Nos Estados Unidos, a média é de 19% a mais.
É assim também no campo da cultura em geral.
O feminismo vem se manifestando historicamente em “ondas”, em seus fluxos e refluxos. Na virada dos séculos XIX e XX, a primeira onda foi dos movimentos sufragistas.
Vivi de perto a segunda onda, o feminismo dos anos 1960/70. Morava nos EUA. Foram tempos de transformações comportamentais e sexuais, de rupturas e descobertas, com teorias muitas vezes exacerbadas e provocadoras. Isso foi vital para o passo à frente no rastro das pioneiras sufragistas. A terceira onda foi a dos anos 1990, abraçando a diversidade.
Nesses últimos anos, vem nascendo a quarta onda – impulsionada pela internet e especialmente pelas redes sociais, que facilitam o intercâmbio de ideias.
A música erudita é uma das áreas em que a situação de desigualdade de gêneros é ainda extremamente sensível. Existe, sim, uma discriminação na música contra a mulher compositora e a mulher regente! Talvez porque sejam áreas que ela tem que impor ao universo masculino sua estética, seu pensamento e seus conceitos.
Por exemplo, ainda se discute a condição da mulher compositora. É uma “condição”! Organizam-se festivais, simpósios, congressos sobre a mulher compositora. Uma espécie de gueto. Alguém imagina um festival que homenageasse o homem compositor? Claro que não. Nesse universo masculino, a mulher continua a ser minoria, quase nos mesmos moldes do passado. A história da música ainda está por ser reescrita pela mulher…
Vide os programas internacionais de música erudita – contemporânea ou de qualquer outro período. As mulheres compositoras são sempre uma ínfima minoria! A principal das razões é, claro, a repressão que a mulher sofreu através dos séculos e a fez aceitar um segundo plano.
Acredito que a mais eficiente e justa iniciativa seria a de passar também a programar continuamente a música de compositoras nas temporadas das instituições artísticas nacionais e internacionais – não somente como raridade e novidade. Chega de sermos vistas e ouvidas como avis rara.
Uma efeméride (comemoração tão em voga no meio musical) para o homem é uma celebração. Para a mulher, um desserviço. Dependendo desta “data redonda” ela é jogada no baú do esquecimento, enquanto ele passa a ser visto como o grande mestre.
Somos guerreiras da exceção e apesar de muitos percalços, tenho atuado continuamente há décadas, no Brasil e no exterior, criando e produzindo minhas óperas multimídias desde 1987 (sem contar com o Apague meu spotlight em colaboração com Luciano Berio em 1961). Sete dentre minhas óperas estão gravadas em DVD com distribuição pelo selo internacional NAXOS. Encontro em textos internacionais meu nome entre os pioneiros da multimídia no terreno da música contemporânea. Ópera é por excelência uma expressão multimídia desde o sonho do Gesamtkunstwerk de Wagner , enriquecida hoje pela disponibilidade de meios tecnológicos. Mas no Brasil, o trabalho pioneiro de uma mulher é convenientemente esquecido pela elite masculina de compositores…
É preciso superar as barreiras e a discriminação velada que paira na maioria da intelligentsia musical masculina. Tornei-me autossuficiente. Há mais de trinta anos, atuo com minha empresa produtora, fazendo uso de leis de incentivo fiscal e concorrendo em editais. Sem fazer concessões, é como busco a excelência nestas produções.
Tenho tentado também artisticamente contribuir para questão do gênero. Seis de minhas óperas multimídia enfocam os verdadeiros valores do feminino, resgatando a atemporalidade dos mitos.
Voltando à situação cotidiana: é imperativo manter e ampliar as leis que coíbem a discriminação. Mas isso não é suficiente. Nesta quarta onda, o feminismo precisa atrair homens e mulheres impulsionando a todos para uma reflexão mais profunda sobre valores, ética, complementariedade e o direito de ser diferente. A arte tem papel central nisso.
Enquanto a mulher em todo o mundo não tiver plena cidadania; como o homem, o direito ao seu próprio corpo e a envelhecer com dignidade; enquanto em todo planeta não houver para homens e mulheres liberdade total para sermos diferentes, todas as medidas para reparar séculos de desigualdade serão bem-vindas.
* Artigo originalmente publicado em 03/10/2016 na Tutti Clássicos (online), reproduzido mediante permissão da autora.