Este artigo traz, na íntegra, dois textos dedicados à memória da compositora Esther Scliar (1926-1978).
O repentino desaparecimento de Esther Scliar deixou consternado o meio musical brasileiro, privando-o de uma figura eminente, cuja competência e dedicação se fizeram notar em todas as suas atividades. Mantendo uma absoluta liderança entre as mulheres que em nosso país se dedicaram à composição, Esther deixou nesse setor - e, principalmente, na área do ensino musical - uma lacuna difícil de ser preenchida.
Atuando com extrema lucidez como professora de percepção, análise e composição, ela transmitiu à sua legião de alunos (e a todos aqueles que tiveram o privilégio de com ela conviver) a riqueza e generosidade da sua criativa personalidade, que conseguiu unir como poucas a sensibilidade ao intelecto. Esther manteve sua visão interior e reflexiva do universo musical ao mesmo tempo em que se mostrou sempre participante dos acontecimentos de sua área, especialmente no que dizia respeito à criação contemporânea.
Nascida em Porto Alegre, em setembro de 1926, Esther Scliar fez seus primeiros estudos musicais com Ênio de Freitas e Castro. Em São Paulo, estudou piano com Kliass e harmonia, contraponto e composição sob a orientação de Koellreutter, com quem partiu, em 1948 (ao lado de colegas de curso, como Eunice Katunda e Sonia Born), para a Bienal de Veneza, onde frequentou as aulas de regência de Harmann Scherchen. Radicada no Rio de Janeiro na década de 1950, fez estudos posteriores de composição com Cláudio Santoro e Edino Krieger.
Entre as suas obras principais, todas registrando o crivo de uma escrita minuciosa e perfeccionista, destacam-se a Sonata para piano (1o Prêmio no Concurso Nacional de Composição do programa Música e Músicos do Brasil - Rádio MEC/1961), a Sonata para flauta e piano, o Auto da Barca do Inferno (para orquestra), a trilha sonora para o filme A Derrota (Prêmio Melhor Música no Festival de Brasília/1967) e diversas peças para coro, citando-se entre elas Canto Menor com Final Heróico, O Menino Ruivo, Desenho Leve, Para Peneirar, A Praia do Fim do Mundo e Toada de Gabinete, esta composta em 1976, por encomenda do Jornal do Brasil e Rádio JB para o 5o Concurso de
Corais do Rio de Janeiro. Além, evidentemente, da excepcional Imbricata - que Esther escreveu para o trio de Norah de Almeida, Norton Morozowicz e Harold Emert (piano, flauta e oboé) - estreada em fins de 1976 na Sala Cecília Meireles, durante a Série Música Nova, e repetida ano passado (com verdadeira consagração de público) na 2a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, no mesmo local.
Atualmente, a compositora trabalhava numa série de Estudos para violão e numa Invenção a Duas Vozes, para sax alto e soprano.
No campo didático, a presença de Esther Scliar foi um verdadeiro marco no ensino teórico musical brasileiro dos últimos 15 anos. De 1962 a 1976, lecionou percepção e análise nos Seminários de Música Pró-Arte, passando em seguida a concentrar-se em seus alunos particulares e a dar cursos extracurriculares na Escola de Música Villa-Lobos, a convite de seu diretor, o compositor Aylton Escobar. Deixou preciosas apostilas sobre suas concepções didáticas, várias das quais estava compilando no momento para a edição de um livro sobre análise musical.
Entre os seus inúmeros alunos, podem ser enumeradas figuras atuantes nos mais diversos setores da música brasileira, como Miguel e Marli Proença, Saloméa Gandelman, Eliane Sampaio, Luiz Paulo Horta, Luiz Fernando Zamith, John Neschling, Aleida Schweitaer, Linda Maria Bustani, Oscar Castro Neves, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Paulinho da Viola, Paulo Moura, Murilo Santos, Vania Dantas Leite, Mariene Fernandes, Jaques Morelembaum, Norah de Almeida, Maria José Michalski, Eliane Rodrigues, Dayse Szajnbrum, Felicia Wang e Carlos Alberto Figueiredo, os dois últimos seus sucessores nas matérias que lecionava nos Seminários Pró-Arte.
Lúcia e participante, Esther vai fazer muita falta. Além da sensível compositora e da admirável mestra, perdemos uma das vozes mais equilibradas para o julgamento e observação da nossa realidade musical. Sua participação na última Bienal da Sala Cecília Meireles foi um sopro de luz e coerência entre as posições extremistas que em geral imperam na criação musical brasileira contemporânea. Presença assídua nos debates após os concertos, ela tinha sempre a palavra certa para definir uma situação ou registrar um problema, com a sagacidade que lhe era inata e a experiência advinda de uma atividade intensa, norteada por uma dedicação sem limites à arte musical.
Jornal do Brasil, Ano 1978, Edição 00344.
Traumatizado pelo súbito desaparecimento de Esther Scliar, o meio musical carioca poderá reencontrar-se com algumas de suas obras no concerto especial programado para a próxima quarta-feira na sede dos Seminários de Música Pró-Arte (Rua Alice, 462), onde Esther ensinou Harold Emert, o excelente oboísta que, por coincidência, foi um dos três intérpretes da Imbricata, de Esther, apresentada com tanto sucesso na recente Bienal de Música Brasileira Contemporânea, estará também apresentando-se na Pró-Arte, na próxima semana, num concerto-palestra dedicado a obras de oboé solo que será repetido mais formalmente, na quinta-feira, no auditório da Alliance Française (Rua Duvivier, 43). A registrar ainda o reinício das atividades da Orquestra Sinfônica da UFRJ, regida por Roberto Ricardo Duarte, que se apresenta na terça-feira na Reitoria da Cidade Universitária. Quanto ao mais, abalada pela desaparição de um dos seus esteios, a vida musical carioca aguarda o verdadeiro início de uma temporada de que Turandot foi o grande cartão de visitas.
Jornal do Brasil, Ano 1978, Edição 00346.
MIRANDA, Ronaldo. Ano 1978, Edição 00344. Insubstituível Esther. Jornal do Brasil, Ano 1978, Edição 00344. Disponível em: http://memoria.bn.br/
HORTA, Luís Paulo. Uma homenagem a Esther Scliar. Jornal do Brasil, Ano 1978, Edição 00346. Disponível em: http://memoria.bn.br/