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FIC Maravilha: 50 anos do VII Festival Internacional da Canção

28/10/2022 - José Fernando Monteiro

FIC Maravilha: 50 anos do VII Festival Internacional da Cançãoi

Entre os meses de setembro e outubro de 1972 era realizada a sétima e última edição do Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro (FIC), o último festival também da áurea “Era dos Festivais”ii. Depois de uma conturbada saída de Augusto Marzagão, idealizador do festival e diretor das edições anteriores, o FIC foi organizado mais uma vez pela TV Globo, emissora que o sediava desde 1967iii. O festival não conseguiu manter-se ativo por mais tempo, mas deixou marcas profundas na música popular brasileira e na indústria do entretenimento.

Para estar à frente do VII FIC foi chamado ninguém menos que Solano Ribeiro, o precursor dos festivais da canção no Brasil, responsável pela organização do I Festival da TV Excelsior, em 1965, também organizador do II, III e IV Festivais da TV Record, entre 1966 e 1968, mesma emissora em que organizou ainda a Bienal do Samba, também em 1968.

No VII FIC, Solano Ribeiro ocupou oficialmente o cargo de supervisor artístico, enquanto José Octávio Castro Neves foi o diretor-geral. Segundo o próprio Solano, ele ficou responsável pela fase nacional do FIC e José Octávio se encarregou da fase internacionaliv, sobre o que falaremos mais adiante. É claro que aos responsáveis pelo certame, além da parte artística, ainda eram concernentes muitas outras obrigações, burocráticas e até diplomáticas. A estes dois se acresce o major Paiva Chaves, encarregado da administração e da logística do eventov. Esta “divisão de tarefas” inseria-se numa estratégia da TV Globo para conferir maior profissionalismo ao festival (que vinha sofrendo ataques a respeito de seu amadorismo e até decandentismo), prática atrelada a uma nova politica da emissora, encabeçada pelo diretor Walter Clark, fazendo uso de uma poderosa máquina econômica e de marketing, resultando no que ficou conhecido como “padrão Globo de televisão”vi.

Obstante, sob o lema “Revelação, Renovação e Evolução”, incessantemente repetido nas semanas que antecedem o festival, o VII FIC inicia-se em 16 de setembro de 1972, no ginásio Gilberto Cardoso, o Maracanãzinho. A ideia era mudar radicalmente o festival e modernizá-lo, uma transformação sentida e visível, que abrangia a modificação da logomarca do festival (no lugar do frondoso galo criado por Ziraldo, foi posto um novo galo formado pelas iniciais F.I.C.) e também do troféu galo de ouro, agora concebido pelo joalheiro Caio Mourão, no formato, literal, da cabeça de um galovii.

Imagem 1: O galo do FIC em 1972. Fonte: O Globo, 16 set. 1972, Segunda edição, Matutino, Geral, p. 05.

Imagem 2: O troféu galo de ouro de Caio Mourão para o VII FIC. Fonte: O Globo, 24 set. 1972, Matutino, Geral, p. 01.

As mudanças, todavia, estiveram longe de parar por ai.

Foi o primeiro ano em que houve a transmissão em cores para o Brasil. Se o festival era transmitido desde 1969 em cores para o exterior, os espectadores brasileiros puderam ver as imagens coloridas do festival apenas nesta última edição. Tais imagens preocuparam a censura brasileira, bastante restritiva nestes tempos em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar vigente, levando os censores a questionar menos as letras das músicas classificadas, como habitualmente se fazia, e mais o comportamento das artistas europeias frente às câmeras, com seus vestidos transparentes, decotes e corpos à mostra, aparentemente mais voluptuosos quando transmitidos em cores, o que era visto como um atentado contra a moral e a mentalidade brasileira da épocaviii.

A intervenção do regime também se fez em relação ao júri de seleção da fase nacional. Inicialmente formado por Mário Luis Barbato, Rogério Duprat, Décio Pignatari, Roberto Freire, Alberto de Carvalho, João Carlos Martins, Sérgio Cabral, Guilherme Araújo, Big Boy, Válter Silva e tendo Nara Leão como presidente, foi dissolvido após esta última fazer declarações consideradas ofensivas ao Exército. O júri foi substituído, silenciosamente, por um outro formado apenas por estrangeiros que já estavam no Rio de Janeiro, com o pretexto de poderem avaliar melhor as canções brasileiras para o mercado internacional.

Aquando da realização do VII FIC, de acordo com Rita Morelli: “Falava-se também que aquela poderia ser a oportunidade para uma já então esperada renovação no cenário musical brasileiro, com o surgimento de novos compositores e intérpretes.”ix. Realmente foi o que aconteceu, de modo que, talvez a principal mudança deste festival ocorre quanto às músicas brasileiras e no surgimento de uma nova safra de artistas revelados pelo VII FIC.

Quando foi convocado para organizar o FIC, Solano Ribeiro mal se dava conta da responsabilidade que enfrentaria, mas tinha a certeza de que era o único com “trânsito no meio artístico” e know how para coordenar aquele evento, como relembra em seu livro de memórias intitulado Prepare o seu Coração (2002). De acordo com Solano:

“Terminada as inscrições, as surpresas começaram a aparecer no júri prévio: Raul Seixas com Let me Sing, uma feliz mistura de rock com xaxado; Sérgio Sampaio veio com Eu Quero É Botar meu Bloco na Rua; Alceu Valença inscreveu Papagaio do Futuro; Fagner classificou Quatro Graus de Latitude; Belchior e Ednardo completavam a presença do Ceará. Uma voz marcante chegou a comover a todos no júri de seleção: era Sirlan com sua bela Viva Zapátria. Oswaldo Montenegro, de Brasília, então com dezesseis anos, o mais jovem compositor classificado para concorrer em um festival, veio com O Automóvel. Também tivemos alguns compositores já conhecidos, como Baden Powell, Jorge Ben e um trabalho de vanguarda que iria causar apaixonados e emocionados momentos ao longo das apresentações, Cabeça, de Walter Franco. Uma cantora fazia sucesso no Number One, o lugar da moda na noite carioca, Maria Alcina.”x

Esses novos compositores, “ilustres desconhecidos”, inexperientes, “mas de grande gabarito e espírito profissional”xi, surpreenderam a todos os que esperavam a mesmice e sensaboria de festivas anteriores. Os jovens artistas insurgentes conviviam com outros já consagrados, tais como Marlene, Alaíde Costa, Jackson do Pandeiro, Roberto Menescal e Baden Powell, numa simbiose que, ao invés de criar antagonismos entre jovens e velhos, proporcionou combinações entre tradição e modernidade, resultando em hibridismos diversos entre músicas e ritmos. Do samba ao rock, passando pelo baião, xaxado, bolero, tango, soul e experimental, inúmeros gêneros e formas musicais marcaram presençaxii.

O FIC tinha como grande diferencial, em relação a outros festivais, a sua divisão em duas fases distintas, uma nacional, em que concorriam as canções brasileiras, e outra internacional, em que a canção brasileira vencedora concorria com canções de diversos países. Outra substancial modificação deste ano foi a premiação apenas para a primeira colocação, todas as outras seriam classificadas como segundo lugar. Duas canções, entretanto, seriam apuradas na final nacional e consideradas primeiro lugar, uma pelo júri oficial e outra pelo júri popular, seguindo ambas para a fase internacional. Isso porque neste ano, excepcionalmente, concorreriam duas canções de cada país convidado (15 países ao todo), sendo igualmente premiadas apenas as canções classificadas em primeiro.

Na fase nacional as vencedoras foram Diálogo, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, com Cláudia Regina e Tobias, e Fio Maravilha, de Jorge Ben, defendida por Maria Alcina.

O experiente Baden Powell estava certo de que sua música agradaria ao júri internacional, por ser, em suas palavras, “bem brasileira” e ao gosto daquela maioria de pessoas “interessada em música brasileira, que entende do assunto e veio aqui para descobrir gente que está fazendo música brasileira pura.”xiii. Além da vitória no FIC, Diálogo ainda teve mais um privilégio. Foi prometido que os vencedores da fase nacional ganhariam automaticamente o direito de concorrer no Festival Ibero-Americano (Festival OTI), lançado naquele ano, em Madri, sob a direção de Augusto Algueró, assíduo frequentador do FIC. Apenas Diálogo, no entanto, de fato concorreu, vencendo o festival, a primeira das três vitórias brasileiras neste certame que duraria até o ano de 2000.

https://www.youtube.com/watch?v=KqYCVx3Np8w

A outra vencedora da fase nacional, Fio Maravilha, esteve, por sua vez, muito mais em sintonia com a verdadeira transformação impulsionada por este festival. Maria Alcina foi descoberta por Solano Ribeiro enquanto fazia uma temporada na boîte Number One, propriedade de Mauro Furtado em que a cantora iniciou sua carreira. O nome “Number One” também foi usado para a banda que acompanhou Alcina no palco do FIC, formada por uma infinidade de músicos, alguns dos quais já vinham acompanhando a cantora em suas apresentaçõesxiv. Maria Alcina se tornou uma aposta da Rede Globo e internamente divergiam as opiniões sobre seu lançamento no festival ou no programa de Moacyr Franco. O seu descobridor e realizador do FIC, Solano Ribeiro, colocava-a em um elevado patamar, apontando Alcina como “o maior fenômeno aparecido na música popular brasileira depois de Carmem Miranda e Elis Regina”xv. Depois de sua vitória, Maria Alcina foi mesmo bastante aclamada e parecia resumir bem o intuito de renovação e inovação proposto pelo festival, seguindo depois em sua carreira com um marcante estilo híbrido e andrógeno.  

https://www.youtube.com/watch?v=E2XlLLIKuBA

A composição de Jorge Ben foi feita em homenagem ao jogador Fio, do Flamengo, narrando um gol espetacular que o próprio Jorge Ben presenciou no Maracanã, e ganhava o festival quase ao mesmo tempo em a filha Simone, do jogador com sua esposa Sandra, nascia na maternidade, por isso logo chamada “Simone Maravilha”xvi. Mas a canção enfrentou percalços devido às divergências que surgiram entre Fio e Ben, fazendo este mudar o nome da canção, por muito tempo, para Filho Maravilha. A confusão foi resolvida muitos anos depois e devolveu o título original da canção, que, na verdade, nunca mudou na boca do público.

Fio Maravilha ganhou a Europa com a regravação de Nicoletta (francesa que representou a Grécia no VII FIC), em uma versão com letra de Boris Bergman e título mudado para Fio Maravilla. A versão francesa fez sucesso também no Brasil, na década de 1970, e acompanhou toda a carreira de Nicoletta, que já havia se tornado amiga de Jorge Ben desde o festival. Também em francês Fio Maravilha foi gravada por Mélodie Stewart e ganhou ainda versões em italiano e inglês.

https://www.youtube.com/watch?v=uUHat_o81fw

As vencedoras na fase internacional do VII FIC foram duas canções hard rock, uma de estilo progressivo, Aeternum, do grupo italiano Formula Tre, pelo júri popular, e outra com sotaque blues, Nobody Calls Me a Prophet, do canadense, que defendeu os Estados Unidos, David Clayton-Thomas, ex-vocalista do Blood, Sweet and Tears.

https://www.youtube.com/watch?v=0JBRoOFjXME

https://www.youtube.com/watch?v=VKNhDE_OSic

O último dos FIC’s, embora pretensamente mais sério e profissional que os outros, já se encontrava desgostado e desinteressado por parte público. Neste ano foram feitos grandes investimentos, pela TV Globo e pela Secretaria de Turismo da Guanabara (apoiadora do festival desde a primeira edição), para melhoria no palco, na produção, transmissão, iluminação e, especialmente, para tentar resolver os insolucionáveis problemas acústicos do Maracanãzinho, não logrando muitos resultados. Alguns artistas, principalmente internacionais, também resolveram investir pesado em suas participações e, inevitavelmente, terminaram por obter maior consagração, levando o festival a sofrer acusações de “caitituagem”, em que, não necessariamente, mas se destacou quem gastou mais.

Outras acusações que pairaram sobre o FIC foi a de consumismo em detrimento do reconhecimento artístico e de servir como porta de entrada para as músicas estrangeiras, o que seria ironizado pelo Pasquim em edição que retrata o “galo do FIC” como um “cavalo de Tróia” (ver imagem abaixo). Essa visão, todavia, seria em parte contestável, pois, ao menos nesta última edição do FIC, procurou-se equilibrar o quantitativo de apresentações de estrangeiros nos shows especiais da fase nacional e de brasileiros na parte internacional, assim como foram apresentados conjuntamente brasileiros e estrangeiros nos shows programados fora do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em que dividiram o palco nomes como Gilbert Montagné, Wilson Pickett, Novos Baianos, David Clayton-Thomas, Demis Roussos, Hermeto Paschoal, Astor Piazzola, Formula Tre, Georges Moustaki, Maria Alcina, Mungo Jerry, Gal Costa, Gilberto Gil e outros, numa aparente valorização das atrações nacionais. No caso de Gil, recém-chegado do exílio em Londres, a semelhança com artistas internacionais se fazia ainda mais notada. Talvez devido à experiência adquirida no exterior, Gil demonstrou uma postura à altura de qualquer outro superastro que se apresentou no FIC, e foram muitos.

Imagem 3: Capa da edição de O Pasquim ironizando o FIC. Fonte: O Pasquim, nº 169, set.-out. 1972.

Como assinalado, este foi o sétimo e último Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, e também o último certame da “Era dos Festivais”, iniciada em 1965 com o I Festival da TV Excelsior, como vimos, organizado também por Solano Ribeiro, este que ainda seguiria como realizador de outros festivais, todavia, sem o mesmo encanto deste período áureo da música popular brasileira.

https://www.youtube.com/watch?v=Y57ns1cUJdQ


i Este artigo é parte dos resultados obtidos nas pesquisas de Doutorado, intitulada Festivais RTP e Festivais da MPB: Entre a tradição e a modernidade (2020), realizada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com bolsa sanduíche Faperj na Universidade de Lisboa, e de Pós-Doutorado, intitulada Fase Internacional do FIC: O Festival Internacional da Canção e sua contribuição para a difusão da música brasileira no exterior (2022), realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ii MELLO, José Eduardo (Zuza) Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003.

iii A primeira edição do Festival Internacional da Canção, em 1966, foi realizada pela TV Rio.

iv “SOLANO RIBEIRO”. Entrevista concedida por vídeochamada (Whatsapp), em 17 set. 2022.

v RIBEIRO, Solano. Prepare o seu Coração. São Paulo: Geração Editorial, 2022, p. 170.

vi “Pragmatismo e profissionalismo orientou passagem pela Globo”. por Carlos Eduardo Lins da Silva. Folha de São Paulo, Cotidiano, 25 mar. 1997. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff250333.htm> Acesso em: 01 nov. 2021.

vii “FIC só dará prêmio ao 1º colocado”. O Globo, 10 set. 1972, Matutina, Geral, p. 16.

viii RIBEIRO, Solano. Prepare o seu Coração. São Paulo: Geração Editorial, 2022, p. 168.

ix MORELLI, Rita C. L.. Indústria Fonográfica: Um estudo antropológico. 2ª ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009, pp. 71-72.

x RIBEIRO, Solano. Prepare o seu Coração. São Paulo: Geração Editorial, 2022, p. 165.

xi “VII FIC tem de tudo: Do ‘rock’ ao samba”. O Globo, 07 set. 1972, Matutina, Geral, p. 13.

xii “VII FIC tem de tudo: Do ‘rock’ ao samba”. O Globo, 07 set. 1972, Matutina, Geral, p. 13.

xiii “Baden Powell enaltece a importância do festival”. O Globo, 03 out 1972, Matutino, Geral, p. 12.

xiv “MARIA ALCINA”. Entrevista concedida por videoconferência (Google Meet), em 21 jan. 2021.  

xv  “Solano Ribeiro vai lançar um fenômeno chamado Maria Alcina”. O Globo, 13 set. 1972, Matutino, Geral, p. 05.

xvi “Simone ‘Maravilha’ é a estrela de Fio e nasceu bem gorda”. O Globo, 03 out 1972, Matutino, Geral, p. 12.