Talvez ainda não tenha sido devidamente avaliada a importância do papel de Esther Scliar no desenvolvimento da música brasileira. Para ela, viver era fazer música. Concentrava todas as suas energias nessa atividade. Mas tinha também uma preocupação especial para com a realidade cultural brasileira, como um todo.
Esther tinha uma visão inovadora do aproveitamento do folclore, sem abandonar as técnicas de composição cultas. Costumava dizer: "O folclore brasileiro é um dos mais ricos do mundo, mas é preciso saber combinar dialeticamente a matéria-prima brasileira com a formação inovadora e vanguardista da arte. Este é um problema fundamental". Em várias de suas obras corais vemos uma intensa ligação com o rico material nordestino, como é o caso, especialmente, da peça Toada de gabinete (1976), sobre motivos de violeiros da Paraíba. Outro bom exemplo é Ofulu-Lorerê-Ê (1974), sobre canto de Oxalá, do candomblé baiano. Podemos também citar Beira-mar (1953), sobre um ponto de macumba.
Esther gostava muito de escrever para coral, com base na sua experiência como regente de coro em Porto Alegre, nos anos 1950. Escreveu poucas obras instrumentais, algumas incompletas. As principais são: Imbricata (1976), Intemorfoses (1977), Sonata para piano (1961) e o Estudo n.1 para violão (1976). Fez também música para cinema e teatro.
Esther teve também uma ativa participação nos movimentos de vanguarda musical. Tive a oportunidade de assistir várias Bienais de Música Contemporânea Brasileira, na Sala Cecília Meireles. Nessas ocasiões, costumava dizer: "O novo pelo novo, gratuitamente, os efeitos pelos efeitos, não me interessam se a obra não tiver um conteúdo e uma estrutura firmes. Do contrário, elas logo perderão o interesse".
Ela sempre se manifestava contrária à utilização da semiologia nos estudos de análise musical, pois tinha a convicção de que a música é uma arte destituída de significados.
Considerava muito importante a exploração da música no campo da eletroacústica, apesar de ter verdadeiro pavor de lidar com máquinas. Ela estimulou muito as compositoras Vânia Dantas Leite e Marlene Fernandes a criar uma sistematização da música eletroacústica.
Esther não se restringiu à composição. Grande parte de sua preocupação era com a educação musical, onde detectava deficiências primordiais. Resolveu então criar um sistema, o mais completo, rico, criativo e básico da teoria e análise musical, buscando abranger todos os estilos de várias épocas, sem nunca esquecer de dedicar uma parte à música brasileira.
Executada na Bienal de Música Contemporânea Brasileira de 1977, esta composição foi unanimamente aplaudida e bisada, por sua beleza e comunicação.
Escrita para flauta, oboé e piano - três instrumentos de timbres bastante contrastantes - a peça alia o som penetrante, anasalado e expressivo do oboé ao canto doce e sonoro da flauta e aos efeitos percussivos e harmônicos do piano, num casamento perfeito de cerca de seis minutos.
Recordo-me de que quando Esther ainda rascunhava esta peça, dizia que queria dar a ideia de superposição de elementos. Daí o nome Imbricata.
O piano inicia na região grave (aliás, esta região perdura o tempo todo) em pp, com efeitos de tímpanos em semitons, crescendo até a entrada do oboé. Logo após se superpõe a flauta e os dois entram em diálogo, com um ritmo bem variado, cheio de divisões marcantes.
A característica da peça é a dissonância, com acordes de 9a menor, recheada de semitons. Segue-se o oboé fraseando, caindo numa escala modal pentatônica, bem calma e expressiva. Depois o piano inicia o movimento rítmico. Voltam os outros dois instrumentos. Ocorre então a mudança do referente semínima para colcheia, transformando o caráter recitativo dos diálogos entre flauta e oboé num ritmo incisivo. Os elementos vão se mesclando, até ser conseguido um ritmo sincopado que lembra um chorinho. O final é com quatro acordes em ff.
Felicia Wang, julho 1982.
- A partitura de Imbricata encontra-se disponível no portal Musica Brasilis: Imbricata (Esther Scliar)