Tese apresentada ao Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Livre-Docente, na disciplina História da Música no Brasil, junto ao Departamento de Música.
RESUMO
Adotando como problema da pesquisa a falta de trabalhos anteriores que tenham estabelecido com precisão quais foram as obras realmente escritas por João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica, 08/03/1794 — Mariana, 26/01/1832), esta tese assumiu a tarefa de catalogar as possíveis composições remanescentes deste autor, localizadas em fontes musicográficas manuscritas pertencentes ao maior número possível de acervos históricos, o que envolveu a pesquisa em 90 acervos em vários estados brasileiros, a descrição e análise crítica das cerca de 950 fontes localizadas e a avaliação do nível de possibilidade de autoria de Castro Lobo para cada uma das obras catalogadas, uma vez que não foi indubitavelmente constatada a existência de autógrafos deste músico e nem localizada uma relação autografa, coeva ou autorizada de suas peças. A descrição das obras e documentos musicográficos foi realizada na forma de um catálogo crítico e temático, a partir da metodologia internacionalmente adotada para esse tipo de trabalho e fundamentada no estudo analítico de catálogos internacionais e brasileiros da obra de compositores. Além da aplicação das soluções mais eficazes que a bibliografia oferece para a solução de cada problema desta pesquisa, foi criado um sistema próprio de classificação do nível de possibilidade de autoria de cada composição catalogada, a partir da análise de evidências internas (das obras) e externas (das fontes), da pesquisa das informações históricas disponíveis e dos trabalhos já realizados sobre a música deste compositor. Considerando-se a impossibilidade de determinação das obras de autoria certa de João de Deus de Castro Lobo, em função da falta de documentos probatórios (especialmente os autógrafos musicográficos e relações autorizadas de suas obras), as conclusões técnicas do catálogo indicam a existência de 26 obras de autoria provável, 5 de autoria possível, 7 de autoria duvidosa, 14 de autoria improvável, duas obras resultantes de contrafação post-mortem e uma resultante de permutação post-mortem, tendo em vista que cada uma das obras catalogadas pode tratar-se de uma unidade cerimonial (a música para uma cerimônia completa) ou de uma unidade funcional (a música para cada uma das partes da cerimônia). As conclusões musicológicas, no entanto, são a menor existência de obras, documentos e evidências do que as expectativas que existiam na bibliografia a respeito, mas cujo estudo resultou na dissolução de falsas certezas e na primazia das informações verificáveis na documentação musicográfica e administrativa, em uma visão mais científica e realista, de aplicação mais eficaz no estudo das obras deste e de outros compositores brasileiros do passado.
Palavras-chave: Música sacra; Fontes musicográficas; Manuscritos; Autoria; Normas de catalogação.
Esta tese tem como assunto as possíveis composições remanescentes do sacerdote e mestre de capela mineiro e afrodescendente João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica, 08/03/1794 — Mariana, 26/01/1832), e como proposta identificá-las, localizar e compreender a situação de suas fontes musicográficas e organizar as informações decorrentes do seu exame, na forma de um catálogo crítico e temático, fundamentado no estudo analítico de catálogos internacionais e brasileiros da obra de compositores e nas publicações teóricas sobre o assunto.
A pesquisa foi iniciada em 2004, após a finalização dos projetos de catalogação de fontes e edição de obras do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (1996-1999) e do Museu da Música de Mariana (Apêndices 7 a 9), neste último como parte das atividades do projeto Acervo da Música Brasileira / Restauração e Difusão de Partituras (2001-2003), financiado pela Petrobras. Após o estudo dos manuscritos do Museu da Música, da bibliografia e das obras já divulgadas de João de Deus de Castro Lobo, bem como das informações decorrentes dos projetos anteriores, iniciei a visita a outros acervos musicais em 2006, a qual estendeu-se, para este trabalho, até 2016, porém mantendo-se contato à distância com os mesmos e contando com a colaboração de vários pesquisadores.
Uma parte do trabalho, referente ao período de março de 2007 a fevereiro de 2010, foi financiada com Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq e outra, referente ao período de 2013-2015, foi formalizada como projeto de pesquisa trienal para o Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Participou desta pesquisa o estágio pós-doutoral realizado na Universidad de Jaén (Espanha), parcialmente financiado pela UNESP, durante o qual foi possível estudar as convenções internacionais dos catálogos da obra de compositores e as publicações teóricas sobre a catalogação de música e documentos musicográficos, utilizada no volume 1 (Fundamentos) desta tese. As razões de terem sido necessários mais de 10 anos para a catalogação das fontes e cerca de 5 anos para a finalização do trabalho ficarão evidentes com a exposição dos resultados, mas pode-se adiantar que estão relacionadas tanto ao esforço para a localização e descrição dos documentos (que em alguns casos estendeu-se até 2022), quanto à complexidade de sua análise nos modelos teóricos adotados para se chegar às conclusões aqui obtidas.
O problema específico aqui abordado é a falta de trabalhos que tenham estabelecido com precisão quais seriam as composições de João de Deus de Castro Lobo, uma vez que as relações de obras deste autor, que circularam desde o início do século XX (PIMENTA, 1911), não permitem uma clara identificação de sua produção, apresentam muitas inconsistências, exibem obras cuja autoria é duvidosa e possuem, entre si, substanciais diferenças quantitativas e qualitativas. Tais problemas não admitem solução simples, pois tais obras nem estão reunidas em um acervo único à espera de sua descrição e nem foram preservadas em fontes musicográficas com indicações de autoria precisas. Determinar as obras escritas por esse autor foi um processo que dependeu não apenas da visita a 90 acervos em instituições de vários estados brasileiros, mas também da análise crítica das cerca de 950 fontes localizadas e a avaliação do nível de possibilidade de autoria de Castro Lobo para cada uma das obras descritas.
Não seria suficiente, portanto, transcrever, de catálogos de acervos, as informações de obras e fontes com indicação de autoria de Castro Lobo (ainda que trabalhos de divulgação adotem esse procedimento), em parte porque a descrição das mesmas não foi suficientemente detalhada, e em parte porque nem sempre a autoria indicada é provável ou possível. Tendo em vista a falta de trabalhos sistemáticos sobre este compositor, apesar dos esforços empreendidos até o presente por vários outros pesquisadores, tomou-se a decisão de iniciá-lo pelo catálogo crítico de suas obras, para depois estudar pormenorizadamente sua atuação profissional, seguindo a mesma ordem adotada por Cleofe Person de Mattos nos Catálogo temático das obras do Padre José Maurício Nunes Garcia (MATTOS, 1970) e no livro José Maurício Nunes Garcia: biografia (MATTOS, 1996). Assim, esta tese não incluirá o estudo da atividade profissional de João de Deus de Castro Lobo, reservada a um próximo trabalho específico sobre esse tema, mas apenas uma cronologia (Apêndice 2), baseada em trabalhos já publicados sobre esse compositor e destinada a subsidiar as análises das fontes e obras catalogadas.
A tese apresenta quatro grandes partes, sendo as duas primeiras discursivas (volumes 1 e 2) e as duas últimas descritivas (volume 3): I) Fundamentos, destinada às questões históricas, técnicas e metodológicas sobre a catalogação da obra de compositores, no Brasil e no mundo, bem como às questões específicas sobre o a catalogação das obras deste compositor; II) A catalogação das obras de João de Deus de Castro Lobo, destinada a apresentar o histórico sobre o assunto, os critérios de organização do catálogo e estabelecer o nível de possibilidade de autoria de cada uma das obras catalogadas; III) Catálogo crítico e temático das possíveis composições remanescentes de João de Deus de Castro Lobo, com a descrição sistemática das obras e suas fontes; IV) Textos e índices auxiliares do catálogo.
Na parte I são apresentados dois grandes itens, afora a introdução (item 1): 2 - Catálogos da obra de compositores internacionais, destinado ao estudo do desenvolvimento dos catálogos da obra de compositores, o estabelecimento das convenções do gênero e dos procedimentos metodológicos mais eficientes; 3 - Catálogos da obra de compositores do Brasil, destinado a abordar o desenvolvimento desse tipo de obra de referência para os compositores atuantes no país (por autores brasileiros ou internacionais). A Parte II está destinada a apresentar o estado da pesquisa e do conhecimento atual sobre este autor e suas obras (item 4), os problemas da catalogação das composições de Castro Lobo (item 5.1), os critérios estabelecidos para a organização do catálogo das obras e fontes do mesmo autor (itens 5.2 e 5.3) e as argumentações para o estabelecimento do nível de possibilidade de autoria de cada uma das obras catalogadas, a partir da análise dos dados obtidos (item 5.4).
O objetivo específico desta tese é elaborar, a partir das convenções do gênero e da consulta de uma amostra significativa de fontes musicais primárias, o catálogo crítico e temático das possíveis composições remanescentes de João de Deus de Castro Lobo, bem como determinar o nível de possibilidade de autoria de cada uma delas. Em função de seu caráter crítico, da metodologia adotada e da descrição de uma amostra suficientemente ampla de fontes musicográficas com indicação de autoria deste compositor, tal objetivo diferencia-se da listagem de títulos e da transcrição de informações de catálogos anteriores, cujos resultados apresentam inconsistências que não permitem estabelecer um quadro realista de suas obras.
O catálogo das possíveis composições remanescentes de João de Deus de Castro Lobo é destinado a reunir e organizar testemunhos e evidências, tanto internas (referentes às obras), quanto externas (referentes às fontes documentais), que permitam estabelecer algum grau de autoria deste músico, e foi idealizado para ser claro, mesmo frente à complexidade das situações relacionadas às suas obras e às suas fontes. As funções específicas projetadas para este catálogo são as seguintes:
a) Subsidiar os projetos de edição das possíveis composições de João de Deus de Castro Lobo: além de relacionar um grande número de fontes disponíveis das obras desse compositor, o catálogo identifica os manuscritos possivelmente autógrafos, as cópias mais antigas, as mais completas e as mais precisas, de modo a permitir a escolha das fontes mais adequadas para edições críticas.
b) Subsidiar a identificação de obras de João de Deus de Castro Lobo em acervos musicais cujas fontes apresentam múltipla, incompleta ou nenhuma indicação de autoria.
c) Fundamentar a difusão da música de João de Deus de Castro Lobo e do conhecimento ao seu respeito, bem como do conhecimento da música sacra mineira e brasileira do início do século XIX, como parte do patrimônio histórico e artístico nacional.
Os objetivos gerais do trabalho são contribuir para o conhecimento e desenvolvimento da metodologia de elaboração de catálogos temáticos e críticos, enquanto obra de referência musicológica, auxiliando a difusão da relevância dos catálogos críticos e temáticos, especialmente da obra de compositores e visando estimular o desenvolvimento metodológico desse tipo de trabalho no Brasil, assim como contribuir para a catalogação da obra de compositores brasileiros ou atuantes no país. Tais objetivos gerais extrapolam, portanto, o conhecimento específico das possíveis composições de João de Deus de Castro Lobo, permitindo o diálogo com trabalhos relacionados a quaisquer outros autores, de qualquer período histórico e nacionalidade.
Entendo como fundamental essa aplicação tanto específica quanto geral de trabalhos musicológicos de grande porte, particularmente das obras de referência, por resolver problemas localizados e contribuir para a solução de problemas gerais, participando assim de um desenvolvimento da área e não apenas do conhecimento sobre este compositor em particular.
Esta tese adota, como fundamentos, o conhecimento internacionalmente estabelecido sobre a produção de obras de referência musicológica, como no trabalho de Vincent H. Duckles e Ida Reed (1997), e o conhecimento sobre a catalogação da obra de compositores, com destaque para os trabalhos de Barry Shelley Brook (1972, 1997, 2001), apoiando-se nos conceitos de transmissão musical (RICE, 2001) e circularidade cultural (GINZBURG, 1987), e nos trabalhos relacionados à descrição e análise de documentos históricos musicográficos, particularmente os de James Grier (1996) e Carlos Aberto Figueiredo (2014), tecnicamente possibilitado por corpos normativos internacionais para a descrição de documentos históricos e musicográficos, especialmente o RISM (Répertoire International des Sources Musicales) (1996), além das reflexões de Carl Dahlhaus (1999, 2003, 2017) sobre os mecanismos envolvidos nas tradições musicais ocidentais. Não obstante, várias soluções técnicas precisaram ser criadas para permitir a solução dos problemas localizados, porém isso sempre foi feito à luz do conhecimento existente sobre os assuntos abordados e respeitando-se as normas internacionais para a descrição de obras e fontes.
Sendo catálogos de obras de compositores um tipo de obra de referência, é fundamental considerar que sua relevância está no fato de reunirem informações sobre determinado assunto (originalmente dispersas em inúmeros trabalhos específicos), apresentando uma visão geral e compacta nem sempre perceptível a partir da consulta dos trabalhos de origem. Devido a tais características, obras de referência informam com rapidez, apresentam um breve estado do conhecimento sobre o assunto e orientam a obtenção de informações autorizadas, facilitando o acesso público ao conhecimento antes restrito a poucos especialistas.
Vincent H. Duckles e Ida Reed (1997) informam a existência de 13 grandes categorias de obras de referência, com várias subdivisões em cada uma delas e 3.801 títulos internacionais até então publicados. No caso brasileiro, esse panorama é bastante modesto, com algumas bibliografias, discografias, dicionários, enciclopédias, catálogos e obras similares, poucos deles mencionados por Duckles e Reed. A Enciclopédia da música brasileira (1977, 1998), mesmo com duas edições, não apresenta o impacto e a atualidade de obras similares, como o Diccionario de la Música Espariola e Hispanoamericana (CASARES RODICIO, FERNÁNDEZ DE LA CUESTA, LÓPEZ-CALO, 2002) e não foram publicadas suficientes bibliografias que permitam conhecer totalmente a produção musicológica acumulada no Brasil. Em função disso, será adiante avaliada a situação dos catálogos internacionais e brasileiros da obra de compositores, baseada no estudo de uma seleção de catálogos de obras, visando compreender:
- Tipos de catálogos antigos e recentes
- Formas usuais de classificação, ordenação e numeração das obras
- Divisões internas dos catálogos
- Formas de organização da ficha de catalogação
- Elementos de descrição utilizados
- Formas de descrição da informação das fontes musicais
- Tipos de fontes primárias consultadas
- Formas de elaboração do incipit musical
- Formas específicas de organização e descrição de música sacra
- Soluções específicas de particular interesse para o presente trabalho
A partir do estudo desses catálogos, a primeira tarefa foi a adoção de uma forma própria de classificação dos diferentes tipos de catálogos ainda em uso, ao passo que a segunda foi a compreensão das convenções de cada um desses tipos para a elaboração de um catálogo que faça sentido para a música composta por João de Deus de Castro Lobo, tarefa cuja relevância já foi assinalada por Margit McCorkle (1984, p. LX, XXXVIIN), no catálogo de obras de Johannes Brahms:
Um catálogo temático deveria idealmente não apenas aderir às convenções de seu gênero, na natureza e abrangência do seu conteúdo, mas também refletir em sua estrutura - especialmente na ênfase organizacional - a situação histórica do compositor em relação à sua obra. (McCORKLE, 1984, p. LX, XXXVIII)
Para o estudo dos catálogos publicados, visando a compressão das convenções adotadas em cada uma de suas fases, foi consultada uma amostra de cerca de 300 títulos internacionais, além da quase totalidade dos títulos brasileiros disponíveis. A consulta foi realizada principalmente nas bibliotecas públicas do Estado de São Paulo (que possuem cerca de 30 dessas obras, incluindo reedições) e em algumas bibliotecas do exterior, principalmente a Seção de Música (Sala Barbieri) da Biblioteca Nacional da Espanha (Madrid). Alguns títulos internacionais e brasileiros estão disponíveis online, em plataformas como o IMSLP (International Music Score Library Project), o Google Books e a Academia Brasileira de Música, porém em número muito reduzido para prescindir a consulta presencial de exemplares físicos em bibliotecas internacionais, sobretudo das publicações de excelência metodológica.
Após o estudo das convenções dos catálogos internacionais e brasileiros, ficou claro, como será adiante exposto, que não há como aplicar os conceitos de índice ou catálogo da obra completa para o caso de João de Deus de Castro Lobo, uma vez que as composições que chegaram ao presente, seja desse autor quanto dos seus contemporâneos e antecessores mineiros, são apenas remanescentes de sua produção total, não sendo possível sequer listar os títulos das obras que de fato foram por eles produzidas. Tal situação é agravada em função da perda aparentemente total dos autógrafos de Castro Lobo (CASTAGNA, 2012) e da inexistência de listas de títulos de suas composições formuladas por ele ou por seus contemporâneos, o que dá à catalogação das obras deste compositor um significado bastante diverso da catalogação das obras de José Maurício Nunes Garcia por Cleofe Person de Mattos (1970), pois desse autor nos chegou significativo número de autógrafos e listagens de suas obras elaboradas no século XIX.
Tendo em vista tal situação, foi adotado, no presente trabalho, o conceito de “obras remanescentes”, aplicável quando uma parte das composições de determinado autor foi reconhecidamente perdida e não faz sentido recorrer ao conceito de “obra completa”, como também é o caso da maioria dos compositores europeus que atuaram em período anterior ao século XVIII e da quase totalidade dos autores brasileiros de música sacra anteriores ao século XX. O conceito de “obras remanescentes” figura, entre outros, nos trabalhos de Manfred H. Stattkus (1985), que catalogou as “erhaltenen Werke” de Claudio Monteverdi (1567-1643), e de Robert Snow (1980), que de Rodrigo de Ceballos (c. 1525-c. 1581) catalogou a “extant music [...] and its sources”.
Além disso, o presente trabalho não localizou obras remanescentes de autoria certa de João de Deus de Castro Lobo, demandando grande esforço para avaliar quais foram as obras provavelmente compostas por esse autor, o que foi feito por meio da consulta do maior número possível de fontes de cada uma delas, da análise de suas características, da formulação de hipóteses sobre sua transmissão e da classificação do nível de possibilidade de autoria de cada uma delas, em sete categorias formuladas especialmente para este fim:
a) autoria certa
b) autoria provável
c) autoria possível
d) autoria duvidosa
e) autoria improvável
f) contrafactum post-mortem
g) permutação post-mortem
Por essa razão, optou-se pela conceituação do catálogo como das “possíveis composições remanescentes” de João de Deus de Castro Lobo, articulando dois conceitos que caracterizam tanto a descrição da parcela de obras que não foi perdida ao longo do tempo, quando a dificuldade do estabelecimento de sua autoria. Paralelamente, optou-se por um catálogo do tipo crítico, conforme a caracterização que adiante será apresentada, explicitando no título do trabalho dois procedimentos metodológicos sine qua non para a obtenção de resultados minimamente eficientes: a adoção do “catálogo temático”, ou seja, com utilização do incipit musical, e a análise crítica das fontes catalogadas. Catálogos temáticos são usuais desde meados do século XIX, como veremos adiante, enquanto o método crítico é justamente aquele que define os catálogos críticos, tendo sido esse objetivo explicitado em alguns dos seus títulos, como no Thematic, Bibliographical and Critical Catalogue ofthe Works of Luigi Boccherini por Yves Gérard (1969), no Catálogo crítico das obras de Antonio Soler por Samuel Rubio (1980) e no Catálogo crítico, temático y cronológico das obras de Gaetano Brunetti por Germán Lópes de Azcona (2005).
Conceitos específicos referentes a composições, como os de arquétipo, unidade cerimonial e unidade funcional, e conceitos específicos referentes a fontes musicográficas manuscritas, como autógrafo, cópia, conjunto de partes e outros serão apresentados e fundamentados no item 5.1.3, referente à individualidade e autonomia das obras musicais sacras.
Para facilitar sua visualização nos distintos âmbitos nos quais estão mencionados, os códigos dos documentos consultados estão aqui referidos em três formas distintas: sublinhados, no corpo da tese (MMM CDO.01.104, C-01); em negrito nas entradas para a descrição das fontes, no catálogo (MMM CDO.01.104, C-01); sem as formatações anteriores nas notas de rodapé, nas legendas de quadros, figuras, apêndices e anexos, e nos comentários do catálogo (volume 3).
Transcrições de informações históricas no corpo do texto serão atualizadas, salvo indicação explícita de transcrição diplomática por finalidade justificada.
João de Deus de Castro Lobo é, entre os compositores mineiros nascidos no século XVIII, o segundo em número de obras a ele atribuídas, sucedendo apenas José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (JUNQUEIRA GUIMARÃES, 1996), mas com um número de composições próximo ao de Jerônimo de Sousa (CARDOSO, 1999). Paralelamente, Castro Lobo é o sexto autor desse mesmo período em número de composições entre os atuantes no Brasil, atrás apenas de José Maurício Nunes Garcia (MATTOS, 1970), André da Silva Gomes (DUPRAT, 1995), Francisco Manuel da Silva (HAZAN, 1999) e Sigismund Neukomm (ANGERMÚLLER, 1977; BEDUSCHI, 2006), além do já referido Lobo de Mesquita. Mais do que a quantidade de obras, no entanto, é o significado da produção de João de Deus, que representou o máximo grau de elaboração e virtuosismo em toda a música mineira dos séculos XVIII e XIX (GODINHO, 2008), e que assim mesmo ainda não foi contemplado com estudos musicológicos em número e abrangência correspondentes ao seu impacto na cultura musical mineira do século XIX. Por tais razões, decidiu-se elaborar o catálogo das possíveis composições remanescentes João de Deus de Castro Lobo, obra de referência que contribuirá diretamente para a sistematização do conhecimento de suas obras e indiretamente para sua maior divulgação.
Uma vez estabelecido o quadro das possíveis composições remanescentes de João de Deus de Castro Lobo, especialmente daquelas classificadas como prováveis e possíveis, será possível entender melhor o significado e o tratamento da autoria na transmissão manuscrita de música sacra no Brasil ao longo dos séculos XVIII a XX, bem como repensar o quadro de autoria até agora admitido para as obras sacras mais antigas desse período. Tendo em vista que, se mesmo para um compositor do século XIX a certeza de autoria se dilui na transmissão manuscrita de suas obras, a dificuldade é ainda maior para aqueles que atuaram no século XVII, não justificando grande parte das atribuições taxativas de autoria sem análises documentais sistemáticas que ainda é praticada no presente. Se Carlos Alberto Figueiredo (2014, p. 31) já afirmou que “O processo composicional da música sacra brasileira do século XVII é uma pesquisa que ainda precisa ser feita e que, certamente, trará surpresas”, o estudo da transmissão da música sacra no Brasil nesses dois séculos provavelmente dissolverá uma série de pressupostos que, mesmo sem base documental, ainda vêm sendo usados com frequência na atribuição de sua autoria.
O método da catalogação foi aqui adotado não do ponto de vista colonial (ou seja, adotar seu uso no Brasil por ser uma criação originada no primeiro mundo), mas por duas razões básicas, a primeira específica e a segunda geral: 1) porque proporciona a geração de um conhecimento objetivo sobre a produção musical deste compositor e resolve problemas sobre questões complexas relacionadas à identificação de suas obras e avaliação de sua possível autoria, não solucionáveis por outros métodos em maior uso no Brasil; 2) porque pode ser desenvolvido a partir de nossas visões e propostas, como as demais formas de conhecimento internacional colaborativo, ser adaptado e expandido para atender os problemas e necessidades musicológicas brasileiras, bem como ensinado e praticado de forma autônoma por pesquisadores brasileiros, proporcionando o conhecimento cada vez maior do patrimônio musical histórico do país. A adoção e desenvolvimento da metodologia de catalogação no Brasil visa, portanto, capacitar os pesquisadores brasileiros a usar este recurso musicológico, adaptado às nossas perspectivas e necessidades, e com a finalidade de ampliação do conhecimento em relação à produção dos autores locais.
Neste sentido, os assuntos, métodos e opções aqui adotadas possuem relação com o direito à memória e ao patrimônio, e com a própria decolonização do patrimônio cultural, conforme as considerações de Márcia Chuva (2013, 2020), visando a criação de alternativas aos assuntos, métodos e formas de trabalho originados nas visões eurocêntricas e coloniais que foram frequentes nos estudos musicológicos adotados no Brasil (como a escolha de um compositor negro, brasileiro e autor de obras externas ao cânone atual da música religiosa e da música de concerto), proposta que pode ser compreendida por meio do conceito de “giro-decolonial”, formulado por Nelson Maldonado-Torres (2008) e traduzido por Alessandra Simões Paiva (2022) como “virada decolonial”, cujo objetivo, de acordo com João Paulo Pereira do Amaral (2015, p. 20-21), é o de “investigar as formas pelas quais as estruturas de poder continuam produzindo a colonialidade e, por outro, fomentar a mudança de uma atitude racista, sexista ou aristocrática para uma atitude decolonial”. De acordo com Alessandra Simões Paiva (2022, p. 46), trata-se de abandonar a ideia de que a “arte feita por pessoas supostamente inferiores, como eram considerados os povos afrodiaspóricos e as comunidades originárias das Américas com base em uma falaciosa classificação racial”, seria uma imitação “tosca” da arte europeia, para, em lugar disso, “problematizar o desenvolvimento artístico nas Américas e sua relação com os países colonizadores” (PAIVA, 2022, p. 45).
A proposta decolonial, portanto, não é iconoclasta em relação ao patrimônio musical antigo, não defendendo o seu esquecimento, descarte ou abandono por conta de sua ligação com o passado colonial. Pelo contrário, a atitude ou virada decolonial está, em primeiro lugar, na compreensão tanto do significado atribuído a essa música como forma de controle social naquele lugar e naquele tempo (por meio da difusão tanto da crença na cura, perdão e salvação associadas ao seu texto e à sua sonoridade), quanto da crença em sua exclusiva legitimidade, frente às culturas musicais de outros povos, formas de vida e situações do período, o que também facilita o questionamento sobre a reprodução de concepções infundadas desse tipo na atualidade. Paralelamente, seu estudo também revela a excelência de parte da produção musical brasileira do passado, permitindo seu usufruto como obras de arte no presente (acompanhado da consideração crítica de que se trata de música originada em um sistema colonizador, racista e escravocrata), mas principalmente a história da capacitação de músicos brasileiros e afrodescendentes nas normas, técnicas e estéticas composicionais europeias, anteriormente dominadas quase exclusivamente por músicos brancos nascidos nas nações dominantes. Neste panorama, o rigor metodológico da pesquisa é um forte apoio às propostas decoloniais, uma vez que identifica de forma precisa as obras e os processos de criação e difusão associados aos mecanismos de dominação por meio da música, em lugar de declarações simplistas e taxativas direcionadas à totalidade da produção musical brasileira do passado.
Por fim, ressalto que a catalogação de fontes musicais históricas faz parte de minha produção acadêmica desde 1996, quando iniciei a catalogação da Seção de Música do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, e que envolveu disciplinas de graduação e pós-graduação, orientação e publicações sobre este assunto, destacando-se a orientação e prefácio dos catálogos de obras de Henrique de Curitiba (JUSTUS e BONK, 2002) e José Penalva (SERAPHIM PROSSER, 2000), a orientação do catálogo temático de obras de Heinz Geyer (1897-1982), tese de doutorado de Roberto Fabiano Rossbach (2020), e o prefácio do catálogo das obras de Euclides de Aquino Fonseca (DIAS, 2022).
*Versão completa (3 volumes) disponível para download em: Catálogo João de Deus de Castro Lobo (Paulo A. Castagna)