Início do conteúdo

A Cartilha Rítmica para piano de Almeida Prado

01/05/2017 - Sara Cohen

Prefácio da primeira edição

Paralelamente ao processo de transformação da linguagem, com a crescente dilatação da tonalidade até a sua total supressão e o surgimento de uma nova linguagem livre, a criação musical do século XX assistiu a um processo semelhante no campo da estrutura rítmica, com a gradual libertação da tirania do compasso, por meio de uma independência agógica do fraseio melódico, já iniciada em Brahms e outros românticos do século XIX, até chegar à polirritmia, à rítmica alternante e à total abolição do mensuralismo. 
Difícil determinar a relação de causa e efeito entre as trajetórias da linguagem e da rítmica. Certamente, são ambas consequências de um processo evolutivo do pensamento musical, que se conjugaria ainda, no final do século XX, com o desenvolvimento das novas tecnologias no campo da produção de novas fontes sonoras, em que a total liberdade em relação ao fenômeno físico-acústico do som atinge verdadeiros paroxismos.
Como Schoenberg se dispusera a propor uma nova organização da linguagem, com seu sistema serial, Almeida Prado se dispõe não a propor uma nova organização da estrutura rítmica, mas a catalogar, na forma de uma cartilha com finalidade didática, as principais configurações rítmicas ocorridas ao longo do processo de libertação da quadratura setecentista.
Na verdade, ninguém melhor do que ele para essa tarefa: sua própria criação musical é, em si mesma, um vasto mostruário de invenção rítmica, fruto de uma fecunda imaginação criadora tanto no campo da rítmica quanto nos da linguagem e da expressão. Essa fértil imaginação criadora não raro provoca arrepios nos intérpretes, ao visualizarem a complexidade da estrutura métrica e rítmica de suas partituras. Mas depois de uma aproximação mais serena, sua execução resulta de uma fluência e naturalidade que identificam o primado do pensamento musical sobre as aparentes elucubrações matemáticas, confirmando a presença de um mestre.
Com sua Cartilha Rítmica para piano, Almeida Prado formula um convite irresistível para um passeio musical por meio do emaranhado das múltiplas possibilidades de articulação rítmica e métrica da matéria sonora praticadas ao longo do século XX, inclusive em sua própria obra. Importante enfatizar que nesses exercícios lúdico-musicais a ideia musical é sempre o fator determinante e seu registro gráfico apenas consequente, um meio para atingir um fim que é o próprio impulso criador inicial.
Mas a coletânea de exercícios, elaborados com um aproveitamento técnico de todos os recursos do piano, não se limita a instrumentalizar o estudante e capacitá-lo a reproduzir as múltiplas formas da estruturação rítmica, das figurações isorrítmicas à alternância de tempos medidos e livres, da pulsação fixa deslocada pelos acentos irregulares à espacialização intervalar e rítmica, da conjugação de síncopes e quiálteras em ritmo flutuante à liberdade mensurada, dos compassos mais simples como o 2/4 aos mais inusitados como 10/16, 11/16, 13/16, 7/8 contra 4/8, 5/2, 15/32, 19/8 etc.
Com sua inesgotável imaginação criadora, ele oferece também, nesses exercícios, um resumo das técnicas e linguagens da música ocidental, do gregoriano ao cânon renascentista, da invenção bachiana à marcha em homenagem a Gottschalk, dos exercícios de Czerny aos pássaros de seu mestre Messiaen. Mas tudo com a presença marcante de sua forte personalidade, que incorpora, em absoluta harmonia, todas as linguagens, da tríade tonal à sua superposição politonal e às estruturas livres características de grande parte da música do fim do século XX. Sem faltar a presença da religiosidade que marca a vida e a obra do compositor.
Mas não é só: a abrangência universal dos exercícios se completa com a fascinante releitura de ritmos oriundos de culturas não-europeias, como os afro-brasileiros e os hindus.
Normalmente pouco familiarizados com os ritmos populares, quase sempre consequência de uma orientação acadêmica preconceituosa – é normal um estudante de piano se mostrar incapaz de improvisar ou reproduzir, de ouvido, um sucesso da música popular –, os estudantes, inclusive os brasileiros, encontrarão nessa coletânea de exercícios uma proveitosa e musicalíssima introdução aos ritmos e às características de algumas expressões musicais populares do Brasil, como o maracatu, o frevo, o baião, os cabocolinhos e alguns ritmos afro-baianos, culminando com a batucada, que o autor define como a festa de todos os ritmos. 
Como os afro-brasileiros, também os exercícios sobre ritmos e modos hindus não são mera compilação de caráter musicológico de protótipos rítmicos, mas um exercício criativo de releitura de fontes primárias, utilizadas como pontos de partida para atingir o objetivo didático da coletânea.
Admirável é certamente o trabalho criador de Almeida Prado, na elaboração dessa cartilha, que certamente merece, por seu alcance didático e sua beleza musical, tornar-se de conhecimento e uso obrigatórios por parte de escolas, professores, estudantes de música em geral, compositores e intérpretes, em todas as partes do mundo. 
Ressalte-se também o grande mérito do trabalho editorial destas duas musicistas da mais alta estirpe: a pianista Sara Cohen e a musicóloga e mestra Salomea Gandelman, que promoveram a revisão da editoração gráfica das partituras e produziram textos preciosos para o conhecimento do conteúdo musical e técnico dos exercícios. 
Louve-se ainda o excelente registro sonoro de grande parte dos exercícios, brilhantemente executados por Sara Cohen, comprovando, com sua perfeição técnica, a fluência musical que faz das mais complexas figurações rítmicas um acontecimento sonoro fascinante. 

Rio, 24 de dezembro de 2005

Edino Krieger 

Apresentação

A Cartilha rítmica para piano foi idealizada e composta por Jose Antonio Rezende de Almeida Prado (1943-2010) basicamente na década de 1990.  Patrocinada pela Petrobras Cultural com apoio na Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura., a 1a edição foi disponibilizada ao público em 2005 na forma de livro em papel. Nele encontram-se as partituras revisadas (com a supervisão do autor) e editadas, textos que apresentam o leitor ao compositor, à Cartilha e às modernas concepções rítmicas abordadas na obra, uma pequena análise dos 103 exercícios, uma relação de dissertações e teses sobre a obra pianística de Almeida Prado e ainda um CD (ao piano Sara Cohen) com o registro  da maior parte dos exercícios.
A excelente repercussão da Cartilha, material precioso não só para pianistas, como também para estudantes e professores de teoria da música, percepção musical, apreciação musical, análise, composição e musicólogos nos levou a considerar que a obra merecia uma republicação revista e ampliada. Mantendo o espírito original do projeto, qual seja o de propor uma articulação entre a partitura e seu correspondente sonoro e a teoria da música, encontramos no projeto Musica Brasilis () o espaço para veiculação e disponibilização da Cartilha 
Almeida Prado nos deixou antes de levar a cabo sua intenção, expressa em carta reproduzida na íntegra ao final do livro, de estender a Cartilha a outros instrumentos. Para nossa alegria, isso tem sido concretizado por alunos. O compositor, professor querido que foi, certamente sentir-se-ia feliz e orgulhoso com a projeção de seu trabalho. 
Nosso desejo permanece o mesmo explicitado na primeira edição: o de que este material incentive a curiosidade pela escuta e pelo aprofundamento de várias das   estratégias composicionais exploradas nas músicas pós período da prática comum, e contribua para a obtenção da competência para a solução de questões de performance e do desenvolvimento de processos criativos.
Agradecimentos especiais a Mariza Gandelman e Abrahão Brafman e a todos que incentivaram a republicação da Cartilha, em particular a nossos alunos, leitores-críticos e entusiastas do trabalho. 

Rio de Janeiro, maio de 2017
Salomea Gandelman
Sara Cohen


O compositor e a obra
O compositor

José Antônio Rezende de Almeida Prado, nascido em Santos, São Paulo, em 1943, é um dos mais representativos e consagrados compositores brasileiros da atualidade. Discípulo de Dinorá de Carvalho, Camargo Guarnieri, Osvaldo Lacerda e Gilberto Mendes, no Brasil, e Nadia Boulanger, Olivier Messiaen e Annette Dieudonnée, em Paris, entre 1969 e 1973, tem produzido obra tão rica, expressiva e variada quanto vasta. Paralelamente à intensa atividade criadora, foi diretor do Conservatório Municipal de Cubatão (1973), professor de composição e análise no Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (1975-2000) e professor convidado no Music Department da Universidade de Indiana (1984) e na Rubin Academy de Jerusalém (1989-1990), ocupando desde 1982 a cadeira nº 15, Carlos Gomes, da Academia Brasileira de Música. De seu catálogo constam obras para as mais diversas formações, entre as quais: orquestra, vozes solistas e coro (Pequenos funerais cantantes, 1969), orquestra, piano e quinteto de sopros (Aurora, 1975), orquestra (Sinfonia Unicamp, 1976, e Sinfonia dos orixás, 1985-1986), 2 pianos e banda sinfônica (Cartas celestes VII, 1998), violino e orquestra (Concerto, 1999), violino e orquestra de cordas (Concerto, 1976), piano, flauta e quarteto de cordas (Portrait de Lili Boulanger, 1972), soprano, narrador, piano e percussão (Carta de Jerusalém ou Jerusalém – Visão musical, 1973), viola solo (Sertões, 1978), saxofone e piano (230 East, 51th, New York, 1983), 5 flautas (Livro de Oxossi, 1986), violino e piano (Sonata nº3, 1991), 2 violões (Sonata tropical, 1996), voz e piano (Quatro poemas de Manuel Bandeira, 1998, entre muitas outras) e piano solo, instrumento do compositor – pianista dotado de grandes recursos técnicos e rica palheta timbrística – para o qual criou vasta literatura. 
É igualmente extensa a lista de prêmios conquistados, destacando-se os concedidos pelo Festival de Música da Guanabara (Pequenos funerais cantantes, 1969), Comissão Estadual de Música de São Paulo (oratório Trajetória da Independência, 1972), Instituto Goethe, em conjunto com a Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (Magnificat, para coro à capella e Livro sonoro, para quarteto de cordas, 1973), Associação Paulista de Críticos de Arte (Concerto para violino e orquestra de cordas, 1976, e Noturno nº 13 para piano e violino, 1993), Governo do Estado de São Paulo – Medalha Mario de Andrade (1979), Funarte (prêmio nacional pelo conjunto da obra, 1995), 9º Concurso Internacional Francesc Civil de Girona (Cantares dos sem nome e de partidas, para soprano e cordas, 1996), Governo do Estado de São Paulo – Troféu Guarani, Prêmio Carlos Gomes (pelo conjunto da obra, 2000), Fundação Vitae (Concerto para oboé e cordas e Cartas Celestes nos 13 e 14, 2001) e, mais recentemente, em 2005, a Medalha do Mérito Cultural concedida pelo Ministério da Cultura.
Seu percurso composicional passa pela estética nacionalista de Mário de Andrade e Guarnieri, universal (atonal/serial/serial-dodecafônico/transtonal), pós-moderna (inclusão de colagens, citações e emprego de formas do Romantismo, como o noturno, a balada e o prelúdio), chegando à sua síntese pessoal, na qual explora, com mais ênfase, o tonalismo livre. Ainda na fase guarnieriana ou após sua ruptura com o mestre, quando saiu em busca de novos caminhos, já era possível perceber em suas obras o embrião das características estilísticas que sempre foram os traços distintivos de sua escrita: grande variedade de timbres, espacialização das alturas, rica palheta de intensidades, de 5p a 4f, emprego de trêmulos e clusters, texturas densas e mistas, produção de grandes ressonâncias, rítmica complexa, combinação de modalismo, tonalismo e atonalismo, e utilização de toda a extensão do teclado.
A especulação abstrata não encontra ressonância no compositor. Mesmo ao pesquisar possibilidades de novo vocabulário sonoro ou da forma, sua poiesis nasce de um tema folclórico, de um poema, de uma vivência religiosa, do interesse pelo mundo mítico-telúrico, de sentimentos, impressões e fantasias, processados e convertidos em fluxos sonoros concebidos com extrema sensibilidade. Sua permanente preocupação com o timbre, associado a cores, texturas e espacialização, fez e faz dele um compositor pictórico, um compositor poeta, um compositor neo-impressionista, cujas sugestões verbais – luminoso, musgoso, solar, ígneo, noturnal, fulgurante, transparente como uma aurora, como uma espiral de fogo, granítico, estelar, como uma manhã lavada depois da chuva, incandescente, gritante como uma bigorna de fogo e muitas outras – são um apelo à fantasia, à escuta e à busca pelo intérprete de toques e sonoridades particulares.


Vertentes pedagógicas 

O estudo dos manuscritos da Cartilha Rítmica para piano, de Almeida Prado, revelou-nos um material precioso que enfoca muitas das complexas questões rítmicas da música do século XX. Pouco a pouco, constatamos a adequação e a inteligência com que o compositor concebeu os exercícios, cujo potencial pedagógico procuramos evidenciar.
Organizada em quatro cadernos com exercícios progressivos, a maior parte deles compostos em 1992 e 1999, a Cartilha inclui algumas peças já conhecidas dos estudiosos da obra do compositor, como Ad laudes matutinas (1972), O canto das savanas (1983), do ciclo Savanas, Momentos 14 e 19, do 3º Caderno de Momentos (1974), a 5ª. variação de Ta’aroá (1971), e o aproveitamento de um trecho da Nebulosa NGC 696095 da Carta celeste nº 1. No texto de abertura do volume I, que posteriormente passou a ser o volume II, intitulado “Pequena explicação”, Almeida Prado escreve que, inicialmente, idealizou “alguns estudos onde algumas dificuldades técnicas seriam exploradas sistematicamente”. Desistiu, no entanto, por considerar que, anteriormente, havia feito, de forma implícita, esse tipo de trabalho em seus 55 Momentos, compostos entre 1965 e 1983. Imaginou, então, uma “espécie de Czerny dos dias de hoje”, tendo o ritmo como foco principal. 
Assim como, na primeira metade do século XX, a dissonância se emancipou e o sistema tonal se dissolveu, a regularidade da pulsação e da métrica também foi desestabilizada, por intermédio de procedimentos, tais como constante mudança de fórmulas de compasso, articulações e andamentos, deslocamento de acentos, síncopes, ritmos aditivos, polirritmias e polimetrias, perturbações contínuas acompanhadas da exploração de novos aglomerados sonoros e de grandes ressonâncias que estimulam a escuta e a imaginação sonora do intérprete. São essas as questões de que Almeida Prado trata, grupando seus exercícios predominantemente em torno de uma delas, explicitada no título, embora outras, subjacentes, também estejam implicadas. Os exercícios, apesar de apresentarem a característica que define o gênero – repetição de um determinado padrão visando ao seu desenvolvimento cognitivo e motor –, são, na maior parte dos casos, pequenas e belas peças que merecem constar em programas de concerto. Neles, o compositor mostra, uma vez mais, não só seu domínio do métier, como também uma nova faceta, a de professor do instrumento, não tão nova, se considerarmos o pianista que é: transpõe para o ensino do piano questões complexas e relevantes da música contemporânea.
Apesar do título e subtítulo da obra – Cartilha rítmica para piano: exercícios progressivos – falarem por si mesmos, e mostrarem claramente a natureza dos exercícios, o modus faciendi do processo pedagógico empreendido pelo compositor foi objeto de nosso escrutínio. Uma análise sistemática de todos os exercícios permitiu identificar as diferentes formulações rítmicas propostas por Almeida Prado, bem como avaliar suas soluções pianísticas. Na apresentação, todavia, o compositor deixou entrever, tanto dos problemas rítmicos quanto pianísticos, uma combinação do consagrado com o novo. A prática rítmica do período da prática comum (common practice period ) convive na Cartilha com novas formas de organizar o pulso, o metro e o andamento. Aos estudos de agilidade, escalas, acordes, tipos de toques, sonoridades, polifonia e pedal, aspectos que utilizam o modo maior-menor no ensino tradicional do piano, vêm juntar-se os modos gregos, hindus, particulares (escalas enigmática, oriental e outras sintéticas) , e a exploração de ressonâncias. 
É o olhar do professor de piano que busca a aliança do desenvolvimento da técnica pianística com o conhecimento dos recursos composicionais explorados pelos compositores contemporâneos. Essa combinação é cuidadosamente realizada: os exercícios são construídos com extrema economia de materiais e propriedade pedagógica. A complexidade em um plano é compensada por relativa descomplicação em outro; elaborações sutis e contínuas, cujas leis de formação frequentemente nos escapam, tecem a textura dos exercícios, na qual os materiais originários mantêm seus contornos. Sob a ótica do pianismo, o compositor sabiamente tira proveito de algumas características funcionais da mão: agrupamentos sucessivos em graus conjuntos, escalas, acordes arpejados, dedilhados em padrões construídos com base no formato da mão permitem ao pianista focalizar sua atenção nos problemas propostos pelos exercícios, facilitando os caminhos que levam à performance e ao conhecimento do princípio rítmico envolvido. Orientações importantes quanto à maneira de estudar alguns deles também são oferecidas pelo compositor.
Embora a Cartilha tenha o subtítulo “exercícios progressivos” e seja organizada em volumes com níveis de dificuldade entre fácil e muito difícil atribuídos pelo próprio autor, tanto o título quanto o subtítulo e a classificação são passíveis de discussão. Os muito difíceis sem dúvida são um desafio mesmo para pianistas experientes, mas a execução dos fáceis e dos de média dificuldade pressupõe boa leitura e coordenação motora, ou seja, experiência musical e controle técnico prévios. É bem verdade que se pode aprender a fazer fazendo – um árduo caminho –, mas o mais proveitoso e econômico é fazer um estudo preparatório e/ou paralelo com outras obras – entre os compositores brasileiros, por exemplo, peças de Osvaldo Lacerda, Ernst Widmer e Cláudio Santoro. Além disso, o título Cartilha pode fazer pensar em “livro para aprender a ler” ou “compêndio elementar ou rudimentar de arte, ciência ou doutrina”, segundo o dicionário Aurélio , mas, de fato, diz respeito a questões básicas da rítmica explorada por compositores desde o início do século XX. O termo progressivo, por sua vez, não pode ser tomado no sentido de seguimento de uma ordem preestabelecida, mas entendido de forma muito mais rica e abrangente por algumas razões fundamentais, que são da própria natureza e essência do processo ensino-aprendizagem: acréscimo, em cada grupo de exercícios, de um elemento novo; apresentação de conjuntos de exercícios com características específicas, havendo, pois, “novidades” de um grupo para outro; e, last but not least, ser o novo sempre muito novo, pertencente ao vocabulário da música dos séculos XX e XXI. É interessante observar que o volume I apresenta alguns dos problemas que voltarão, sob títulos diferentes ou aparentados, com maior e por vezes até menor grau de dificuldade, nos seguintes. 
Cabe, neste ponto, uma referência ao Modelo Espiral proposto por Tillman e Swanwick  para explicar e, simultaneamente, avaliar o desenvolvimento musical em seus diferentes estágios – dos materiais, da expressão, da forma e do valor –, manifestos nas diversas atividades musicais expressas pela sigla C(L)A(S)P: composição, literatura, apreciação, habilidades várias (skills) e performance. Ora, a recursão ou característica cíclica – necessidade de percorrer o Espiral a cada contato com o novo, qualquer que seja o estágio de desenvolvimento musical do músico, a cumulatividade – idéia de que o conhecimento musical se faz por camadas cumulativas – e o movimento pendular, no qual se observa a polaridade entre os lados esquerdo, idiossincrático, individual, e o direito, socialmente compartilhado, do Espiral, ou seja, a alternância entre assimilação e acomodação indicativas de mudanças qualitativas no mesmo estágio de desenvolvimento, pilares do Espiral, são observados na construção da Cartilha. Como sempre, porem, caberá ao professor, à luz do conhecimento que tem de seus alunos, indicar os exercícios mais necessários e factíveis para cada um e, como estímulo, propor a leitura de outros, segundo suas preferências.

Estratégias rítmicas no século XX e a Cartilha rítmica para piano

Uma característica da produção musical do século XX é a convivência entre obras que apresentam ritmo e métrica semelhantes aos encontrados no período da prática comum e outras com estratégias rítmicas totalmente inovadoras. A Cartilha, de Almeida Prado, sem pretender esgotá-las, explora em seus quatro volumes muitas dessas estratégias, algumas delas bastante complexas. 
Observamos que quase todos os exercícios da Cartilha estão escritos em notação ortocrônica . Apenas quatro – Figuras e acentos diversos com ressonâncias (I.9) , Espacialização intervalar e rítmica (III.2), Diminuições e aumentações de figuras em torno de uma nota pivô (III.10) e Quiálteras simultâneas (III.13) – e o terceiro grupo de exercícios de ritmos hindus não apresentam fórmulas de compasso explícitas. Essa observação delimita a abrangência rítmica da Cartilha, orientando nosso estudo para as estruturas métricas nela subjacentes, os padrões duracionais de superfície e a interação entre eles. 
Alguns estudiosos tomam como ponto de partida para a abordagem do ritmo nas músicas do século XX o conjunto de normas relativamente familiares das estruturas métricas da música tonal do período da prática comum. O ritmo desse período é interpretado em uma perspectiva hierárquica na qual pulsos isócronos, claros ou implícitos, com velocidades distintas são enunciados em três níveis: o central, caracterizado pela presença de pulsos regulares e recorrentes; o inferior, no qual as durações isócronas (unidades de tempo) estabelecidas pelos pulsos do nível central são divididas em duas ou três partes; e o superior, no qual a pulsação é agrupada em unidades maiores . O padrão recorrente de forte e fraco do nível superior é denominado metro (compasso). Pode ser binário ou ternário e permanece praticamente invariável, uma vez estabelecido, o que, em termos de notação, implica seções ou composições inteiras escritas sem mudança de fórmula de compasso. Há sincronia entre os grupamentos de pulsos em todos os níveis da hierarquia, isto é, todos os pulsos em níveis lentos coincidem com pulsos fortes em níveis mais rápidos. O andamento se mantém estável ao longo da composição ou seção. Mudanças métricas superficiais ou temporárias são operacionalizadas por intermédio do tempo rubato, da síncope, da hemiólia e das quiálteras .
Não é uma coincidência que a regularidade métrica seja uma característica da música tonal, pois é por meio dela que a harmonia funcional e a condução de vozes recebem parte de sua força. Quando, no fim do século XIX, inicia-se a gradual dissolução da tonalidade, desenrola-se, paralelamente, o relaxamento da regularidade e a consequente flexibilização das barras de compasso. A irregularidade rítmica e a gradativa transformação dos demais elementos do discurso musical ganham força. 
Partindo das normas do período da prática comum, irregularidades na estrutura podem ser operacionalizadas de várias formas: por grupamentos irregulares em todos os níveis da hierarquia, simultaneidade de métricas diferentes (polimetria), assincronia e alterações controladas na velocidade e no andamento. Essas operações podem se interconectar, gerando estruturas complexas do ponto de vista quer da grafia, quer da performance. São esses os aspectos que abordaremos, ilustrando-os com os exercícios da Cartilha.


Princípios aditivo e divisivo

São dois os princípios reguladores básicos freqüentemente utilizados na descrição do ritmo musical. O divisivo, familiar à música tonal ocidental e predominante nas músicas do período da prática comum, é facilmente compreendido como uma progressão a passos iguais. Em uma estrutura hierárquica como a de compassos, os períodos de tempo são divididos em unidades rítmicas menores iguais, que por sua vez também são divididas, e assim por diante. No princípio aditivo, os períodos de tempo são construídos por sequências de mínimas unidades rítmicas, resultando em grupamentos compostos por elementos longos e curtos, como 2+1,  3+3+2 ou qualquer outra combinação. Na adição, o princípio está no que se acrescenta; na multiplicação (divisão), está no que se repete. 
Na descrição de ritmos assimétricos (aqueles que não podem ser divididos em duas partes de igual duração) e ritmos irregulares (padrões métricos que não se repetem), característicos de grande parte da música posterior ao período da prática comum e das músicas de tradição não-ocidental, o princípio aditivo é aplicado. Por exemplo, a fórmula 4/4 informa que os quatro tempos de cada compasso são ocupados por semínimas ou, dissolvendo  cada semínima, oito colcheias. Há regularidade (as unidades de tempo se repetem), homogeneidade (as unidades de tempo têm a mesma natureza) e simetria (o grupo pode ser dividido em outros dois grupos de igual duração). Já o padrão rítmico da fórmula de compasso [3+3+2]/8, apesar de também abrigar oito colcheias, divide-as em três grupos: os dois primeiros com três colcheias e o último com duas. Não há, portanto, simetria e homogeneidade entre as unidades resultantes da coagulação das colcheias de cada grupo, e a regularidade ocorre apenas no nível da métrica. 
Um bom exemplo para ilustrar o diálogo entre os dois princípios é o exercício II.32: um tempo fixo em 4/4 é contraposto a um tempo livre, cuja figura mínima de referência – a semicolcheia – é agrupada irregularmente. 


Grupamentos regularmente e irregularmente variados

Se no período da prática comum a estrutura métrica se caracteriza por grupamentos regulares e constantes no nível superior e inferior da estrutura hierárquica, no século XX são encontrados muitos exemplos de grupos de pulsos regularmente variados no nível central, isto é, grupos de pulsos que variam em um padrão regularmente recorrente como 3+2, 3+2, 3+2 ou 2+3+2, 2+3+2, 2+3+2. A forma mais frequente de sua grafia é a utilização de numerador diferente daqueles mais encontrados no período da prática comum. Os numeradores 5 – compasso quinário (II.6) – e 7 – compasso septenário (II.7) –são tão utilizados quanto os numeradores 2, 3, 4, 6, 9, e 12 . Além desses, todavia, podem ser encontrados, entre outros, os numeradores 1, 8, 10 e 11 (II.11).
Para descrever o fenômeno, surgem novas expressões como compassos complexos, compassos assimétricos, compassos aditivos ou ainda compassos irregulares. Destacamos, por sua clareza e capacidade generalizadora, a terminologia de Scliar: compassos primitivos e derivados . Os primeiros são os binários e ternários; de suas combinações resultam os derivados: diretos, quando a derivação é produto de compassos primitivos iguais, e indiretos, de primitivos diferentes. Por exemplo: compassos quaternários são derivados diretos, e quinários e septenários, derivados indiretos. Consideramos, no entanto, que, apesar das tentativas para compreender a organização métrica com um único termo, o melhor é examiná-la por intermédio da análise dos grupamentos e de suas inter-relações em todos os níveis da hierarquia. 
Os grupos de pulsos também podem se apresentar irregularmente variados, gerando estruturas métricas em que as mudanças não estabelecem um padrão consistente de recorrência periódica . 
Uma maneira de grafar a mudança, tanto regular quanto irregular, desses grupamentos é a mudança da fórmula de compasso. Embora não seja uma estratégia exclusiva do século XX, desde então ela tem sido muito mais utilizada que na era tonal. Vários termos são empregados para designá-la: compassos alternados (quando os grupamentos são regularmente variados), mudança de compasso, métrica variável e multimetria. 


Percepção e notação

A irregularidade métrica na Cartilha, muitas vezes é antecipada pela própria mudança de fórmula de compasso. Os exemplos são abundantes: I.1, I.2, I.7, II.3, II.9 a 12, II.28, II.34, II.35, III.1, III.5, III.8, III.9, III.11, IV.2, IV.3 e IV.8. 
Podemos encontrar outros modos de operacionalizar irregularidades e mudanças métricas sem mudança escrita das fórmulas de compassos. Em II.2, é o acento proposto, acento explicitamente indicado pelo compositor por meio de sinais de dinâmica, no início de grupos de acordes repetidos, que condiciona a percepção de metros diferentes, apesar da fórmula escrita: 4/4. Em II.3 e II.6, o conflito entre a métrica indicada pela fórmula de compasso e os acentos propostos é representado por linhas pontilhadas. Outro meio é a especificação de novos padrões de acentos métricos por meio de articulações: em II.22, o padrão 2/4, tradicionalmente quatro semicolcheias mais quatro semicolcheias, é transformado em (3+3+2)/16; em II.26, o acento é consequência da estruturação harmônica. O barramento , por sua vez, explicita visualmente os grupamentos, podendo inclusive ultrapassar as barras de compasso (I.3, I.6, II.5, II.6, II.14, II.15, II.22, II.25, II.26, II.27, II.39, III.15). Em termos de notação, essas operações se interligam e se sobrepõem.
A hemiólia, procedimento antigo, mas muito explorado ainda hoje, é uma estratégia que torna ambígua a percepção métrica. Seu sentido geral é a proporção de um e meio para um. Em outras palavras, duas quantidades que se relacionam, de forma que uma contenha a outra uma vez e meia. Em música, hemiólia designa a inserção de uma estrutura rítmica ternária em uma binária, ou o seu inverso; diz respeito, pois, à relação 3:2, seus múltiplos e submúltiplos em todos os níveis da hierarquia rítmica. Por exemplo: dois compassos de três tempos podem ser reorganizados, sem modificação da fórmula de compasso, em três compassos de dois tempos (e vice-versa); seis colcheias, em compasso binário composto (dois tempos), podem ser articuladas como três semínimas em compasso ternário simples (e vice-versa). A hemiólia aparece em vários exercícios – I.3, II.4, II.8, II.25, II.27 – e, em I.4, processam-se também, por meio dela, modificações de andamento entre as seções.


Polirritmia

A simultaneidade de dois ritmos conflitantes  – polirritmia – pode ser observada em I.5, II.51, III.2, III.12, III.13, III.14, III.16, e III.36 a III.38. 
Polimetria

Da mesma forma que as mudanças de compasso, as polimetrias (simultaneidade de duas ou mais métricas), podem ser percebidas auditivamente, mesmo que não estejam explicitamente escritas. Diferentes notações podem ser utilizadas: em pequenas passagens ou quando o conflito métrico entre os planos não é grande, cada um deles pode ser escrito na fórmula de compasso que expressa sua estrutura métrica, mas em longas passagens ou naquelas em que a interação é particularmente complexa, os compositores preferem utilizar uma fórmula de compasso comum aos planos, e a polimetria resulta da acentuação e grupamentos rítmicos. Polimetrias escritas em mesmo compasso podem ser encontradas em II.5; em compassos diferentes, em II.29 e II.30. Por vezes, polimetria, polirritmia e politemporalidade se superpõem, como, por exemplo, em II.39 e em III.15. 


Politemporalidade

Um conceito menos familiar, mas também explorado na música do século XX, é o de politemporalidade : simultaneidade de dois ou mais andamentos distinguíveis auditivamente, estejam eles explicitamente grafados ou subentendidos pela escrita métrica. Exemplos de politemporalidade na Cartilha são os exercícios II.29, II.30 e II.39 a 41.


Assincronia 

A assincronia, defasagem entre planos em qualquer dos níveis da hierarquia métrica, é identificada na Cartilha em situações em que pode, ou não, haver diferença de velocidade entre eles.
Em II.22, um cânon em 2/4, uma mesma figura de referência (a semicolcheia) é agrupada aditivamente (3+3+2) nos dois planos da composição. O movimento melódico salienta o defasamento entre eles; em II.7, grupamentos simultâneos com sete unidades de duração, embora em velocidades diferentes, são estabelecidos: enquanto a mão direita realiza um grupamento em colcheias , a mão esquerda realiza dois em semicolcheias. Há sincronia no início de cada compasso, porém, em 8.4, a adição de mais uma semicolcheia ao grupo das semicolcheias provoca um defasamento. Até 10.4, os planos passam à mesma velocidade (ambos em colcheia), mas de 10.5 a 16 retorna a diferença de velocidades e a estrutura da esquerda (grupamento de sete semicolcheias) é repetida até ser alcançada a sincronia inicial. Outro exemplo de assincronia pode ser encontrado em II.6.
A assincronia muitas vezes resulta da polimetria, como nos corais rítmicos já citados (II.29 e II.30), mas também pode decorrer de uma mesma estrutura métrica em velocidades diferentes. No exercício II.39, em ternário simples, o compositor superpõe aos grupos de três semínimas, na esquerda, uma estrutura ternária mais rápida, em quiálteras de 5 ou 7, cujas figuras internas são acentuadas de três em três. Estratégias semelhantes são utilizadas em II.40 e II.41. As durações da parte superior são mais rápidas que as da inferior, e o resultado é o efeito simultâneo de polimetria, politemporalidade e assincronia. 
Em sentido amplo, polirritmias, polimetrias e politemporalidades promovem assincronias mais ou menos complexas.


Mudanças controladas de velocidade e andamento 

São várias as estratégias empregadas na Cartilha rítmica envolvendo alterações da velocidade. Em muitas delas, observa-se que o controle dessas operações é conseguido por meio de mudanças quantitativas nos grupamentos rítmicos, em qualquer nível da estrutura métrica. Em II.3, por exemplo, o efeito de aceleração ou desaceleração contínua é provocado pela diminuição ou aumentação do número de repetições de um mesmo evento, sem alteração da velocidade das suas durações; nos exercícios II.33 e III.14, a aceleração resulta da utilização de durações cada vez menores no nível inferior da estrutura métrica, com emprego abundante de grupos quialtéricos; mudanças métricas, associadas ao aumento ou diminuição sucessiva do número de figuras rítmicas de referência a cada compasso, dão, respectivamente, um sentido de desaceleração em III.9 (compassos 2 a 9) e de aceleração nos compassos iniciais de III.10.
Mudanças bruscas de velocidade são operacionalizadas pela alternância de figuras longas e curtas, seja no emprego em seções inteiras (II.34), seja na alteração das unidades de tempo e de compasso (III.1), ou somente da unidade de tempo (III.8).
A modulação métrica, outra estratégia de controle de acelerações e desacelerações, frequentemente envolvendo mudança de fórmula de compasso, apresenta uma maneira particular de estruturação. O termo modulação é aplicado porque a mudança ocorre por meio de uma duração pivô que, em processo semelhante ao experimentado pelo acorde-pivô da modulação harmônica na música tonal, fornece unidade de coesão para a passagem da duração antiga para a nova. A mudança de andamento é operacionalizada de forma precisa porque iguala alguma duração ou proporção de tempo no andamento antigo a uma duração ou proporção de tempo diferente no andamento novo. A mudança proporcional de andamento não é uma ideia nova, mas os compositores do século XX a utilizaram com mais frequência e complexidade. 
A expressão modulação métrica tem recebido críticas de alguns autores . Argumentam eles que a designação sugere ser o objetivo do processo as mudanças de métrica, quando, na verdade, elas são agentes da mudança do andamento. Os exercícios de modulação métrica da Cartilha são um bom exemplo da impropriedade do termo porque operacionalizam alterações controladas do andamento sem modificação da fórmula de compasso. Talvez por isso, Almeida Prado os agrupe sob o título modulação rítmica. Essa expressão, todavia, é raramente encontrada na literatura voltada para o ritmo na música do século XX.
O exercício II.36 ilustra a estratégia descrita. Composto em 2/4, consiste em um modelo (apresentado do compasso 1 ao 4.1) sucessivamente transposto aos 12 graus da escala cromática. A cada transposição, o compositor indica a modulação temporal a ser aplicada – a duração da colcheia da tercina determina a duração da colcheia do compasso seguinte. Mas ele ‘facilita’ a ‘modulação’: o primeiro compasso é constituído por colcheias na mão esquerda; no compasso seguinte, às colcheias se superpõem tercinas, também em colcheias, na direita; no terceiro compasso, as colcheias das tercinas são acentuadas de duas em duas, tornando os grupos de duas colcheias da mão direita mais rápidos que os grupos de duas colcheias da mão esquerda, na proporção 3/2. Essa será a velocidade das colcheias, na mão esquerda, a partir do quarto compasso. A acentuação, portanto, antecipa a realização da modulação indicada pela nota pivô.
A estruturação harmônica em tríades do exercício, bastante simples, permite que toda a atenção do intérprete esteja voltada para a realização rítmica. São duas as dificuldades. Uma está na habilidade para realizar os acentos no interior das tercinas, visto que apenas a primeira delas coincide com o apoio métrico (ritmos cruzados). Outra, na habilidade em transformar o reagrupamento provocado pelos acentos em uma nova unidade de tempo. Porém, à medida que o andamento aumenta nas sucessivas modulações, a execução dos acordes repetidos se torna cada vez mais difícil. Na sexta modulação (compasso 16), a colcheia atinge uma velocidade metronômica infactível – 486 –, obrigando o intérprete a interromper o ciclo das transposições. Em II.37, a interrupção ocorre em um ponto mais à frente do ciclo, pois o processo de aceleração é mais lento. Já em III.39, a desaceleração controlada conduz a andamentos tão lentos, que na quinta modulação não se percebe mais a relação rítmica entre as duas partes, descaracterizando o processo e levando também à necessidade de interrupção do ciclo de transposições .
De maneira geral, os intérpretes desejam atingir, em suas performances, andamentos que correspondam às determinações dos compositores. Algumas vezes, porém, elas podem não ser apropriadas. Esse é o caso dos exercícios II.36 e II.37. Apesar disso, o que importa aqui, bem como na Cartilha como um todo, é a compreensão e a realização do princípio envolvido.

Ritmo amétrico

Reconhecemos a métrica de uma passagem ouvindo o modo como os pulsos são divididos e agrupados. Mesmo nas estratégias que utilizam mudanças de compasso ou compassos não tradicionais, somos capazes de identificá-los – lembrando que a capacidade para ouvir uma organização métrica depende de vários fatores, entre os quais a familiaridade com a peça. 
Algumas músicas parecem exibir uma organização métrica não perceptível, denominada amétrica . Em termos de notação, o efeito pode ser conseguido pela utilização, ou não, da fórmula de compasso; apesar de sua indicação, essas músicas soam livres e como que improvisadas (III.12, IV.2, IV.3). O mesmo efeito, embora sem fórmulas de compasso, é alcançado em III.2; mas nem toda música escrita sem fórmula de compasso é amétrica. Em I.9, algumas passagens exibem características amétricas, mas também elementos de organização métrica. Normalmente, quando não há indicação da fórmula de compasso, uma determinada figura orienta as proporções entre as diversas durações. Em III.10, apesar da ausência da fórmula de compasso, o emprego das barras e da notação, como um todo, deixam clara a existência de um esquema métrico variável. A propósito das barras de compasso, Smither aponta três fatos musicais que implicam três formas diferentes de sua aplicação: indicação de pontos de apoio métrico em músicas monométricas (sem mudança de compasso) ou multimétricas; facilitação da contagem das unidades de tempo; indicação de grupamentos em músicas com fórmulas de compasso omitidas, quando compassos de duração desigual são empregados .
O compasso escrito é mais uma moldura que uma descrição da estrutura métrica. O intérprete não deve supor que apenas a notação lhe forneça os meios para compreender a estrutura métrica de uma obra. Para além da notação, é o resultado fenomenológico da relação entre todos os elementos do discurso musical, em todos os níveis da hierarquia métrica, que deve guiar as análises rítmicas.
Frequentemente, as motivações para a busca de novas estratégias rítmicas nascem de investigações focalizadas em músicas de tradição não-ocidental. Para citar apenas dois compositores representativos, Messiaen encontra elementos na música hindu e na métrica da música grega antiga, e Bartók, no folclore musical do Leste europeu. Tendo sido aluno de Messiaen, é natural que Almeida Prado empregue algumas estratégias exploradas pelo compositor francês em grupos de exercícios baseados na rítmica grega e na hindu. 
A rítmica baseada na música africana também é contemplada.


Ritmos gregos

Segundo Maurice Emmanuel , os gregos não separavam a música, a poesia, a dança e o teatro. Seu entendimento da rítmica se fundamentava em uma pequena unidade – cronus protos (‘tempo primeiro’) –, considerada como duração mínima, indivisível, aplicável ao som, à sílaba e ao movimento corporal. Na poesia grega, as sílabas tinham duas durações distintas: breve (U), correspondente ao cronus protos, e longa (-), o dobro da breve. 
Os grupamentos de breves e longas recebiam o nome de pés, designação que se mantém até hoje no estudo da rítmica. Os mais importantes são, entre os ternários, escandidos por três cronus protos, o ‘iambo’, formado pela sucessão de uma breve e uma longa (U -), e o ‘troqueu’ (ou coreu), por longa e breve (- U); entre os quaternários, escandidos por quatro cronus protos, o ‘espondeu’, formado por duas longas (- -), o ‘dáctilo’, por longa e duas breves (- U U), o ‘anapesto’, por duas breves e uma longa (U U -), e o ‘anfíbraco’, por longa entre duas breves (U - U); entre os quinários, escandidos por cinco cronus protos, o ‘péon crético’, no qual se sucedem longa, breve e longa (- U -), e o ‘baco’, breve e duas longas (U - -); entre os pés compostos, o ‘coriambo’, reunião do troqueu e do iambo, uma sucessão de longa, duas breves e longa (- U U -).
Os princípios rítmicos dos gregos eram fundamentalmente diferentes dos ‘nossos’, pois eles partiam de uma pequena unidade, considerada duração mínima e indivisível (princípio aditivo), ao passo que nós fracionamos uma unidade, a semibreve, em divisões e subdivisões em duas e três partes (princípio divisivo), cujo limite é a realização prática das velocidades engendradas . 
Na Cartilha, Almeida Prado utiliza alguns pés gregos reunidos em estruturas métricas não usuais, associando-os, em cânon, aos modos dórico, frígio, lídio, mixolídio, eólio, lócrio e jônio (II.14 a II.20).


Ritmos hindus (III.17 a III.31)

Segundo Messiaen, o Gandharva Veda – Veda dos músicos celestes – reconhece quatro sistemas musicais na Índia, atribuídos aos deuses Shiva, Soma, Hanumant e Bharata. Shiva teria ensinado aos homens a música e a dança, seis mil anos antes da nossa era. São dez os modos do sistema de Shiva, todos pentafônicos. Já os modos do sistema carnático do sul da Índia, atribuídos ao deus Soma, são todos heptafônicos. Quando aplicadas todas as alterações possíveis a seus graus, exceto sobre o primeiro e o quinto, chega-se a 72 modos divididos em duas classes, de acordo com o quarto grau: nos 36 modos da classe çaddha-madhyama, o intervalo entre o quarto grau e a tônica é justo; nos 36 da classe prati-madhyama, aumentado .
Messiaen utiliza a expressão tala em sua acepção primeira e principal, isto é, ritmo, mas também no sentido de padrão rítmico. Apresenta as sete talas da teoria carnática – dhruva, mátsya, rúpaka, jhampa, triputa, atatâla e ekatâla, e suas cinco espécies – tíshra, chaturúshra, cúndh, míshra e sankírna . O quadro a seguir apresenta as 35 possibilidades rítmicas dessa teoria . Podemos escrevê-las em notação ocidental tradicional, fazendo, por exemplo, a colcheia equivaler ao algarismo 2. Nesse caso, a tala dhruva-tishra (exercício III.17) é traduzida como a sucessão de colcheia pontuada, colcheia e duas colcheias pontuadas.

espécie

tala

Tishra chaturúshra cúndh mishra sankirna
Dhruva 3-2-3-3 4-2-4-4 5-2-5-5 7-2-7-7 9-2-9-9
Mátsya 3-2-3 4-2-4 5-2-5 7-2-7 9-2-9
Rúpaka 3-2 4-2 5-2 7-2 9-2
Jhampa 3-1-2 4-1-2 5-1-2 7-1-2 9-1-2
Triputa 3-2-2 4-2-2 5-2-2 7-2-2 9-2-2
Atatâla 3-3-2-2 4-4-2-2 5-5-2-2 7-7-2-2 9-9-2-2
Ekatâla 3 4 5 7 9

 


Messiaen descreve também as 120 deci-talas – talas populares – do sistema de Çârngadeva . Elas são encontradas no quinto dos sete livros, escritos em sânscrito, no século XIII, o Samgîta-ratnâkara, mina de diamantes da música. Ele se detém particularmente em três talas: parvatilocana, sarasvatikanthabharana e lakskmiça . 
Na teologia hindu, cada Deus é acompanhado de sua esposa, ou mais exatamente de seu aspecto feminino, de sua potência de manifestação, de sua Shakti. Assim, Parvati é a shakti de Shiva, Lakskmi a de Vishnu e Sarasvati a de Brahma.
Parvatilocana significa os olhos de Parvati. A representação desta tala em termos de notação ocidental é:

semínima-semínima-semínima-colcheia-semínima pontuada-semínima-semínima-semicolcheia-semicolcheia

 

 

Lakskmiça significa calmo como a paz que vem de Lakskmî’, e é também a deusa da fortuna e da beleza, representada com quatro traços, assim como Vishnu, o que explica as quatro durações da tala:

semicolcheia-semicolcheia pontuada-colcheia-semínima

 

 

 

Sarasvatikanthabharana significa o colar de Sarasvati, deusa da palavra, da ciência, das artes e especialmente da música. A tala representa uma aceleração progressiva – durações cada vez mais curtas, sempre ouvidas duas vezes – oposta ao rallentando progressivo das durações da tala lakskmiça:

semínima-semínima-colcheia-colcheia-semicolcheia-semicolcheia

 

 

Almeida Prado conjuga as características rítmicas das talas da teoria carnática com as notas dos dez modos pentafônicos do sistema de Shiva, em III.17, e com os modos 46 e 68 da classe prati-madhyama, em III.18. Já as três talas do sistema de Çârngadeva, conjugadas ao modo 50 da classe prati-madhyama, resultam em 13 exercícios (III.19 a III.31). Em todos, prevalece o princípio aditivo. Em alguns deles (III.21, III.22, III.28) o compositor não segue rigorosamente a tala indiana de referência.


Ritmos africanos

No exercício I.8, Almeida Prado utiliza um padrão rítmico encontrado na música africana, designado pelo termo timeline, uma referência temporal que guia a estrutura frasal e a organização métrica horizontal  de uma canção.  O padrão da timeline   é produzido tanto pelo bater de palmas quanto por algum instrumento de som penetrante, em ostinato de 12 ou 16 unidades organizadas assimetricamente (por exemplo, 5+7 ou 7+9), simultâneo à melodia e ao ritmo dos demais músicos. Cantores, percussionistas e dançarinos encontram apoio nas batidas da timeline, repetida ao longo da performance.
Com caráter preparatório, o compositor apresenta variações de timeline com 12 unidades, semelhantes às exploradas no exercício I.8, para serem realizadas apenas ritmicamente.


Alguns ritmos brasileiros

No fim do volume II, o grupo de exercícios reunidos sob o título Alguns ritmos brasileiros ilustra o sincretismo entre elementos das culturas européia, africana e indígena, que contribuem para a variedade de manifestações da música brasileira. Ao longo dessa suite, podem ser ouvidas sonoridades imitativas do maracatu, dos caboclinhos, das percussões dos atabaques em ostinato, do coco, do frevo, do baião e do samba. As síncopes escritas muitas vezes camuflam ritmos aditivos que convivem com o compasso binário simples (ou seu derivado direto).

Há ainda, finalizando, alguns exercícios cujo maior interesse não está em alguma questão rítmica específica, mas na forma como ilustram certas formas de compor, como, por exemplo, o modo serial (II.24), que utiliza uma série de 12 sons. Já os três últimos exercícios da Cartilha se baseiam em conceitos explicitados pelo próprio compositor no exercício: a harmonia peregrina (IV.8), o modo serial dodecafônico (IV.9) e o modo serial dodecafônico diatonizado (IV.10).


Análise sucinta dos exercícios

Volume I: 11 exercícios

I.1 Mudanças de compassos. Ciranda 
Alternância entre um padrão constante em 4/4 (8/8) e um padrão que progride aditivamente, de duas unidades (2/8) a 13 (13/8), ambos inspirados no desenho melódico dos exercícios iniciais de Czerny (dó-re-mi-fa-sol-fa-mi-re-dó). Acompanhamento ora em tríade maior, ora em acorde maior com sétima menor. Mudanças métricas sempre indicadas por fórmula de compasso.

I.2 Diferentes articulações. Após o prelúdio BWV 999 de J. S. Bach
Diálogo entre motivo baseado no prelúdio BWV 999, de J. S. Bach, e suas transformações, elaboradas por meio do emprego de compassos derivados indiretos e interferências harmônico-melódicas. Como no exercício anterior, mudanças métricas sempre indicadas por fórmula de compasso.

I.3 Acentuações diversas em 6/8. Catira 
Acentos e articulações (2+2+2, 3+2, 3+2+3, 3+4, 3+3+3+4, 4+5) conflitantes com a  métrica estabelecida pelo ritmo em compasso binário composto da Catira. Destaque para a hemiólia no início do exercício: dois tempos compostos, seguidos por três simples, sem mudança de compasso. Convivência do 6/8 com mudanças métricas indicadas por linhas tracejadas e pequenas fórmulas de compasso acima do sistema de pautas.

I.4 Valsa em quatro andamentos. Sonhos em lilás
Mudanças de andamento com mudanças de compasso operacionalizadas por meio de hemiólias aplicadas à métrica ternária da valsa. 

I.5 Tango rítmico. Corrientes 579
Flexibilização, por meio de síncopes, quiálteras e polirritmias, da regularidade e rigidez métricas do compasso quaternário simples, definidas pelo ostinato rítmico em acordes, na mão esquerda, com acentuação deslocada no quarto tempo – característica do tango argentino. No título, referência a “Corrientes 348, segundo piso ascensor, no hay porteros ni vecinos…”, célebre tango cantado por gerações em homenagem à avenida Corrientes, eixo da cultura portenha na década de 1930.

I.6 Acentuações diversas em 2/4. Chorinho  
Interferências, por meio de acentos e articulações conflitantes, na métrica estabelecida pelo ritmo em compasso binário simples, característico do chorinho. Como na Catira (I.3), convivência do 2/4 com mudanças métricas indicadas por linhas tracejadas e pequenas fórmulas de compasso acima do sistema de pautas.

I.7 Alternâncias de articulações
Alternância entre acorde e sucessão de segundas maiores articuladas em grupos de extensão variável, indicada por mudanças sucessivas de fórmula de compasso. Início de cada agrupamento enfatizado por acorde acentuado.

I.8 Articulações e acentos diversos em 12/8 
Utilização de uma timeline (nota 31) de 12 unidades com algumas variações rítmicas: 7+5, 5+7 (7=2+3+2 ou 3+2+2 ou 2+2+3 e 5=2+3 ou 3+2) e ainda 2+2+2+2+2+2.

I.9 Figuras e acentos diversos com ressonâncias. Ad laudes matutinas
Laudes: primeira oração coletiva do dia. Peça inspirada na liturgia monástica beneditina. Estilização do cantochão, por meio da repetição de notas, de abundante emprego de quiálteras de número variado de elementos e de polirritmia. Antinomia entre duração controlada por meio de figura de referência mínima, a fusa, e duração aleatória das ressonâncias – dependentes da acústica do instrumento e da sala de concerto – produzindo efeito amétrico. Figura de referência grupada em unidades mais longas (semínimas), sem estabelecimento de acentos métricos. Obra estruturada em cinco seções, cada uma predominantemente em determinado registro do instrumento. Três possibilidades de ordenação das seções, respeitada a obrigatoriedade de manutenção da primeira e da última, no início e no fim da peça. Dois tipos de lógica complementares na performance: rítmicas aditiva e divisiva, como, por exemplo, na seção E.

I.10 Quiálteras de 5 e 7 em 2/4. Noturno
Regularidade da melodia, em compasso binário simples, flexibilizada pelo ostinato em quiálteras no acompanhamento, em estilo chopiniano.

I.11 Articulações várias em intervalos crescentes. Pião
Agrupamentos rítmico-melódicos de extensão variável, indicada por mudanças freqüentes de fórmula de compasso, formados por sucessão de intervalos de âmbitos crescentes – do semitom cromático à oitava – em movimento contrário. Número aleatório de repetições dos agrupamentos.


Volume II: 51 exercícios

II.1 a II.8 Pulsação fixa
Manutenção de uma unidade, a pulsação fixa, do início ao fim de cada exercício. Mudanças de métrica, determinadas por acentos propostos e elementos harmônicos, melódicos e articulatórios, sem alteração das fórmulas de compasso (com exceção de II.3). 

II.1. Pulsação fixa com acentos variados sobre pedal de tríade maior
Pulsação fixa na mão esquerda, estabelecida por tríades de dó maior ininterruptas, sempre com a mesma velocidade, sotoposta a tríades maiores sequenciadas cromaticamente, em momentos e registros imprevisíveis. 

II.2 Pulsação fixa com acentos variados
Acordes de três ou quatro sons, articulados ininterruptamente, em mãos alternadas. Perturbação da métrica por meio de acentos propostos. 

II.3 Pulsação fixa com duração decrescente e crescente
Número decrescente e depois crescente de grupos (de 12 ao 1 e vice-versa) formados por desenho rítmico repetido ininterruptamente em ambas as mãos, em movimento contrário. Mudanças métricas – acompanhadas por deslocamento cromático do desenho –, sempre indicadas por fórmula de compasso.

II. 4 Pulsação fixa de três colcheias com articulações de três semicolcheias
Métricas fixas distintas superpostas, grafadas com a mesma fórmula de compasso (3/8). Polimetria resultante de dois grupos de três semicolcheias (6/16) na parte superior, e de três colcheias (3/8), em ostinato, na inferior. Sincronia entre as duas métricas. Bom exercício para a prática da hemiólia (proporção de 3:2): seis semicolcheias na mão direita, agrupadas em duas vezes três semicolcheias, e seis semicolcheias na esquerda, agrupadas em três vezes duas semicolcheias, coaguladas em colcheias.

II.5 Pulsação fixa de quatro colcheias com articulações de quatro e três semicolcheias
Métrica variável superposta à métrica fixa, grafadas com a mesma fórmula de compasso (4/8). Polimetria resultante da sucessão irregular de grupos de quatro e três semicolcheias na parte superior, e dois grupos de duas colcheias, em ostinato com os mesmos elementos melódico-harmônicos do ostinato do exercício anterior, na inferior. Sincronia e assincronia entre as partes. 

II.6 Pulsação fixa de cinco colcheias com articulações de cinco semicolcheias.
Métricas fixas distintas superpostas, grafadas com a mesma fórmula de compasso (5/8). Polimetria resultante da superposição de dois grupos de cinco semicolcheias na parte superior, e de dois grupos, um com três e outro com duas colcheias, em ostinato com os mesmos elementos melódico-harmônicos do ostinato do exercício anterior, na inferior. Assincronia entre as duas métricas a partir do c. 8. 

II.7 Pulsação fixa de sete colcheias com articulações de sete semicolcheias
Métricas fixas distintas superpostas, grafadas com a mesma fórmula de compasso (7/8). Polimetria resultante da superposição de três grupos, com três, duas e duas colcheias respectivamente, em ostinato com transposição dos elementos melódico-harmônicos do ostinato do exercício anterior, na parte superior, e de dois grupos de sete semicolcheias na inferior. Assincronia a partir do c. 8.4. 

II.8 Pulsação fixa de nove colcheias com articulações de nove semicolcheias
Métricas fixas distintas superpostas, grafadas com a mesma fórmula de compasso (9/8). Polimetria resultante da superposição de dois grupos de nove semicolcheias, na parte superior, e de três grupos de três colcheias em ostinato com transposição dos elementos melódico-harmônicos do ostinato do exercício anterior, na inferior. Sincronia entre as duas métricas. Bom exercício para a prática da hemiólia (proporção de 3:2): 18 semicolcheias na mão direita, agrupadas em duas vezes nove semicolcheias, e 18 semicolcheias na esquerda, agrupadas em três vezes seis semicolcheias, coaguladas em colcheias. 
 
II.9 a II.12 Denominador comum
Exercícios com mudanças frequentes de fórmula de compasso. Variação não só da unidade de tempo, como da unidade de compasso. Em cada exercício, denominador comum estabelecido pela menor figura rítmica comum a todos os compassos utilizados. Por exemplo, no exercício II.10, colcheia como denominador comum entre os compassos 4/4, 3/4, 5/8, 2/4, 7/8, 5/4, 9/8, 11/8, 4/8, 3/8 e 6/4. 

II.13 a II.14 Escalas em cânon
Utilização de diversas escalas – diatônica do modo maior-menor, modais gregas, enigmática, oriental, dos harmônicos, serial – em forma de cânon, com distâncias variadas entre as entradas das duas partes, bem como diferentes intervalos entre elas. 

II.13 Escalas diatônicas. Modo maior e menor em cânon à dupla oitava
Cânon à 15ª (duas oitavas) com defasagem de um compasso entre as partes. Aplicação às escalas diatônicas dos modos maior, menor (harmônico, melódico, modal) e napolitano (maior e menor), transportadas a todas as tonalidades, de um mesmo padrão rítmico em compasso binário simples (2/4) com exploração de síncopes. Frequente incidência da tônica em tempo ou parte fraca de tempo e assincronia de sua ocorrência entre as mãos.

II.14 a II.20 Escalas modais gregas
Diferentes padrões rítmicos aditivos com número variável de cronus protos, inspirados nos pés da métrica grega, aplicados a sete escalas modais diatônicas. Conflito entre as partes, resultante da superposição de pés de naturezas distintas. 

II.21 Escalas particulares I. Modo enigmático. Cânon à oitava e acentos em forma de escala
Exercício com lei de formação determinada pela distribuição dos sete sons da escala enigmática em uma figura longa (colcheia) e seis curtas (semicolcheias), organizadas divisivamente em métrica binária (compasso 2/4). Deslocamento da posição da colcheia – e, consequentemente, do acento – a cada repetição da escala (as três primeiras em movimento ascendente e as seguintes em descendente), passando a ser articulada na segunda, depois terceira, quarta, quinta e sexta divisões dos compassos seguintes. Cânon à oitava, com a entrada da parte inferior deslocada de uma semínima.

II.22. Escalas particulares II. Modo oriental. Grupos de intervalos em cânon à décima com articulações de 3+3+2
Conjugação das notas da escala oriental ao padrão rítmico de 16 unidades isócronas grupadas em duas vezes (3+3+2), distribuídas em dois compassos binários simples (2/4). Transposição do modelo para cada grau da escala. Defasagem entre as estruturas provocada pela entrada da parte inferior à distância de colcheia pontuada, no sexto grau, em cânone à décima

II.23 Escalas particulares III. Modo dos harmônicos. Ressonância dos harmônicos superiores e cânon à décima primeira
Emissão sucessiva dos sete primeiros sons da série harmônica (não consideradas as equivalências de oitava), seguida por cânon à décima primeira sobre o modo dos harmônicos, em compasso quaternário simples. Pedal único aplicado do início ao fim do exercício. Reforço da ressonância dos harmônicos superiores na parte final, por meio de acento sobre os sucessivos graus do modo, articulado sobre notas longas de desenho pontuado.

II.24 Escalas particulares IV. Modo serial, cânon à décima segunda
Série de doze sons diferentes formada por dois tetracordes iguais (dórico) separados por semitom, seguidos por quatro sons em intervalos de terça menor. Cânon à décima segunda inferior, com distância de dois tempos, em compasso quaternário simples. 

II.25 a II.28 Variações de acentos
Exercícios com multimetria e/ou polimetria sem alteração da fórmula de compasso inicial. Perturbação da regularidade métrica por meio de articulações, acentos propostos e variação da extensão das estruturas harmônico-melódicas, conjugados diferentemente em cada um dos exercícios. Barramento ultrapassando a barra de compasso.

II 25 Variações de acentos em 6/8
Vinculação ao exercício anterior pela utilização de um conjunto de 12 sons, distribuídos em quatro tríades, duas maiores e duas menores. Grupamentos rítmico-melódicos, próprios do compasso binário composto, formados por essas tríades, em acordes ou arpejos. Superposição de grupamentos diferentes, com mesmo número de elementos ou número de elementos variável, gerados por acréscimo ou supressão de notas nos arpejos das tríades. Ocorrência de conflitos métricos e assincronias ressaltados pelos acentos estrategicamente colocados no início dos grupos. Emprego frequente de hemiólia. 
II.26 Variações de acentos em 8/8
Alternância de momentos de regularidade e irregularidade, sem previsão da ocorrência dos acentos, resultante da variação da extensão de grupos formados por sucessão de acordes da dominante arpejados em ordem e posição preestabelecidas. Início de cada grupamento enfatizado tanto pela repetição do baixo quanto por sua progressão cromática. Barreamento ultrapassando a barra de compasso.

II.27 Variações de acentos em 12/8
Sucessão de acordes quebrados de sétima maior alterados, em ordem e posição preestabelecidas. Grupamentos rítmicos resultantes da repetição de estruturas e dos acentos propostos, conflitantes com a regularidade dos grupos ternários próprios do compasso 12/8. Barramento ultrapassando a barra de compasso.

II.28 a II.35 Oito pequenos corais rítmicos
Estudo de mudanças de andamento e politemporalidade. Várias oposições: forte/piano; vertical/horizontal; tempo fixo (medido)/tempo livre (recitativo); fixo/movente; longo/curto e lento/rápido.

II.28 Mudanças de tempo com a mesma pulsação a três vozes
Mudança de metro com figura de referência constante (colcheia). Efeito de mudança de andamento por alongamento ou encurtamento da unidade métrica.

II.29 Dois tempos diferentes simultâneos
Simultaneidade de duas fórmulas de compasso, com figura de referência constante (colcheia), em textura polifônica a três vozes. Voz intermediária em compasso distinto das vozes extremas. 

II.30 Três tempos diferentes simultâneos a três vozes
Simultaneidade de três fórmulas de compasso, com figura de referência constante (colcheia), em textura polifônica a três vozes. Efeito de politemporalidade resultante de diferentes padrões rítmicos em cada voz.

II.31 Dois tempos simultâneos com quiálteras a três vozes
Efeito de mudança de velocidade resultante de mudanças quantitativas nos grupamentos quialtéricos (três para cinco elementos e vice-versa). Efeito de politemporalidade provocado por polirritmia.

II.32 Diálogo entre um tempo fixo ou medido e um tempo livre (recitativo) a quatro vozes
Mudanças de velocidade e andamento resultantes da alternância de figuras longas, em compasso quaternário simples, e curtas, em ritmos prosódicos aditivos.

II.33 Tempo lento e acelerante a quatro vozes
Aumento progressivo, em cada compasso, do número de articulações, provocando efeito de aceleração.

II.34 Marcha harmônica tonal-cromática a cinco vozes. Mínimas com intervenção de semicolcheias moventes
Aceleração (emprego de durações menores) e desaceleração (emprego de durações maiores, sempre cinco mínimas) controladas, por meio de figura mínima de referência comum, a semicolcheia. Aumento de uma unidade no número de articulações rápidas a cada intervenção do grupo movente.

II.35 Marcha harmônica atonal a cinco vozes. Colcheias moventes e figura de semibreve fixa
Alternância entre figura longa e fixa, a semibreve, e número variável de colcheias agrupadas aditivamente. 

II. 36 a II.41 Quiálteras
Utilização de quiálteras – fator de coesão desse conjunto de exercícios – na operacionalização de mudanças progressivas dos andamentos (II.36 a II.38) e de simultaneidade de velocidades diferentes (II.39 a II.41).

II.36 Modulação rítmica I. Aceleração progressiva por meio de quiálteras de três sobre dois
Aceleração controlada do andamento por meio de figura rítmica pivô, colcheia da tercina. Modelo de quatro compassos transposto cromaticamente. 

II.37 Modulação rítmica II. Aceleração progressiva por meio de quiálteras de cinco sobre quatro
Aceleração controlada do andamento por meio de figura rítmica pivô, colcheia da quintina. Modelo de quatro compassos transposto cromaticamente. 

II.38 Modulação rítmica III. Rallentando progressivo por meio de quiálteras de três sobre quatro 
Desaceleração controlada do andamento por meio de figura rítmica pivô, colcheia da tercina. Modelo de três compassos transposto cromaticamente.

II.39 Valsa com duas articulações ternárias por meio de quiálteras de cinco e sete colcheias
Em compasso ternário simples, semínimas na esquerda sotopostas a quiálteras de cinco colcheias (e depois de sete) na mão direita, acentuadas de três em três, resultando na simultaneidade de dois ritmos ternários em andamentos diferentes (politemporalidade). Aceleração na parte superior na passagem das quintinas para as septinas.

II.40 Marcha com duas articulações binárias por meio de quiálteras de três semínimas
Em compasso binário simples, pedal de acorde em semínimas na mão esquerda, sotoposto a sucessão de quiálteras de três semínimas, na direita, acentuadas de dois em dois, resultando na simultaneidade de dois ritmos binários em andamentos diferentes (politemporalidade). Paródia às Variações sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk.

II.41 Pedal rítmico de cinco tempos e progressão harmônica em quiálteras de três semínimas, porém com articulação de cinco
Em compasso quaternário, pedal de semínimas na mão esquerda, acentuadas de cinco em cinco, sotopostas a sucessão de quiálteras de três semínimas na direita, também acentuadas de cinco em cinco, (polimetria), resultando na simultaneidade de dois ritmos quinários em andamentos diferentes (politemporalidade). Grupamento das semínimas das quiálteras em (3+2) por meio de articulações conjugadas à progressão harmônica.

II.42 a II.51 Alguns ritmos brasileiros
Exercícios com características rítmicas de gêneros da música brasileira: compasso binário e quaternário simples, síncopes, contratempos, acentos deslocados e quiálteras. Presença de polirritmia, polimetria e assincronia.

II.42 Maracatus do Recife I. Algumas articulações rítmicas do gongué e do tarol  
Reprodução de articulações rítmicas e da sonoridade de dois instrumentos utilizados no maracatu: gongué e tarol. 

II.43 Maracatus do Recife II. Esquema rítmico do maracatu
Superposição de articulações do gongué e do tarol.

II.44 e 45. Caboclinhos I e II  
Duas melodias instrumentais alusivas a dois instrumentos utilizados nos caboclinhos de Recife: flauta de pífano e caxixi. 

II. 46 e 47 Dois ritmos afro-brasileiros
Melodia afro-brasileira sobreposta a ostinato percussivo na região grave do piano. Presença marcante de síncopes. 

II 48 Coco-de-embolada 
Melodia com rítmica prosódica lembrando o gênero cantado, acompanhada por ostinato rítmico-melódico. Entre uma variação e outra da melodia, perturbação de sua regularidade por ligação, baseada no ostinato, e metricamente conflitante com ele. Polimetria, a partir do c. 25, resultante da superposição da melodia (2/4) ao elemento de ligação (3/8).

II.49 Frevo 
Seções caracterizadas por mudanças de textura/orquestração, alusivas a conjunto de metais. Andamento rápido, fator relevante para a valorização das desestabilizações características do frevo, provocadas por síncopes, contratempos e acentos propostos.
 
II.50 Baião 
Sobreposição de semicolcheias acentuadas nos tempos e partes fortes do tempo, na mão direita, ao ritmo característico do baião, na esquerda. Assincronia, do compasso 11 ao 14, provocada pela interpolação, na mão direita, de cinco grupos de (2+3) semicolcheias, seguidos de um grupo de (3+4).

II.51 Batucada. A festa de todos os ritmos
Reunião de diversas estratégias rítmicas exploradas no grupo de exercícios Alguns ritmos brasileiros: deslocamentos rítmicos por contratempos e síncopes, acentos propostos, articulações e agrupamentos quiáltericos com números variados de divisões (fatores geradores de mudanças métricas) sobre pulsações regulares ou qualquer dos eventos mencionados. Presença de polirritmias complexas (12:11, 12:13, 20:17) e aceleração controlada (passagem de quatro para cinco, seis, sete e nove divisões por compasso). Reprodução de articulações rítmicas e sonoridades executadas pelos instrumentos da bateria de escola de samba. 


Volume III: 31 exercícios

III.1 Permutação rítmica
Permutação na ordem de uma série de 12 compassos, cada um deles com métrica própria. Percepção das mudanças métricas facilitada pela nota pedal mi e pela mudança dos acordes menores. Efeito de constante variação de velocidade.


III.2 Espacialização intervalar e rítmica 
Obscurecimento da pulsação pela dispersão em registros contrastantes de intervalos e de durações.

III.3 Duas quiálteras simples simultâneas
Quiálteras de cinco e de três simultâneas. Transposição, segundo a escala de tons inteiros, do modelo estabelecido nos dois primeiros compassos. Inspirado em Czerny, como em I.1. 

III.4 Mudança brusca de articulação em progressão diatônica 
Organização de compasso 5/8 em 4/8 + 1/8. Contraste entre o quaternário –colcheias em movimento ascendente – e o  unário –fusas em movimento descendente. Transposição, segundo a escala diatônica de dó maior, do modelo estabelecido no primeiro compasso. Também inspirado em Czerny.

III.5 Variedade de velocidades
Alterações na métrica grafadas por meio de mudanças de fórmula de compasso, muitas com numeradores não usuais (13, 17, 19, 20) e denominadores variando consecutivamente de figuras longas a breves e vice-versa, provocando variedade de velocidades.

III.6 Contratempos
Ambiguidade entre grafia e escuta do contratempo, esclarecida com a articulação de acorde em tesis e acentuado. 

III.7 Síncopes e quiálteras
Efeito de rubato resultante de sutis diferenças entre ritmos sincopados e quialtéricos, rigorosamente grafados. No final, aceleração controlada pelo emprego de durações cada vez menores.

III.8 Variantes de pulsações de três, quatro e cinco
Exercício em três seções com métricas diferentes: ternária, quaternária e quinária. Em cada seção, aceleração e desaceleração segundo o denominador empregado. Todo em acordes de três sons.

III.9 Mudanças de compassos em torno de uma nota pivô (fa#, solb, sol, lab, la, la#).
Após introdução em fusas, mudanças métricas sucessivas, associadas a diferentes acordes quebrados, com figura rítmica de referência constante (colcheia). Percepção dos grupamentos, formados por duas, três e quatro colcheias, facilitada pela nota-pivô (pedal), e das mudanças métricas, operacionalizadas pelas mudanças harmônicas. Em velocidade rápida, escuta de unidades de tempo diferentes – semínima e semínima pontuada – dentro de um mesmo compasso. Desaceleração controlada do compasso 2 ao 9 resultante de mudanças métricas associadas ao aumento sucessivo do número de figuras rítmicas de referência a cada compasso.

III.10 Diminuições e aumentações de figuras em torno de uma nota-pivô (mi)
Figura rítmica de referência constante (semicolcheia). Até o compasso 19, aceleração controlada resultante da eliminação, a cada compasso, da última nota de uma série iniciada com 19 sons, sempre concluída com a nota-pivô acentuada. Repetição da nota-pivô no compasso 20. A seguir, sequência variável quanto ao número de articulações e ao desenho melódico, também concluindo na nota-pivô. Percepção de frequentes mudanças de métrica, escritas sem fórmula de compasso.

III.11 Minimalismo interrompido
Compasso repetido segundo numerador de fórmula não usual (13 depois 16, 19 e 23 unidades), organizado em grupos irregulares de três e duas colcheias. Repetição interrompida por ideia contrastante quanto à duração, ao andamento, às figuras rítmicas, ao âmbito e à dinâmica. Minimalismo caracterizado pela economia de materiais e pelas repetições. Apesar do título, exercício extremamente rico e variado.

III.12 Faixa contínua de quiáltera de cinco
Faixa contínua de quiálteras de cinco colcheias sobrepostas e sotopostas à faixa contínua de quiálteras de três colcheias, interrompidas eventualmente por grupos de quatro colcheias ou variantes. Métrica binária indicada pelo compositor obscurecida por polirritmia.

III.13 Quiálteras simultâneas
Exploração de minimalismo. Três seções, formadas por cinco grupos contínuos de sextinas em semicolcheias, sobrepostos a cinco grupos de quintinas, também em semicolcheias, repetidas sete vezes. Permutação e variação dos componentes melódicos desses grupos. Sutis variações de uma seção para outra. 

III.14Variedade de quiálteras
Sobre, e depois sob, o padrão de quatro colcheias, sucessão de grupos quialtéricos com número crescente de elementos. Na conclusão, alternância, entre as mãos, do padrão três contra dois.

III.15 Quiálteras com pausas em 2/4 
Grupos quialtéricos, na mão direita, com número variado de elementos e contendo pausas, sobrepostos a fundo regular de semínimas no baixo e colcheias articuladas de duas em duas no tenor, na mão esquerda. Assincronia entre o apoio métrico e os acentos nos grupos quialtéricos.

III.16 Quiálteras com pausas em 4/4
Sucessão, em ambas as mãos, de grupos quialtéricos de tempo com número variado de elementos (3, 5 e 7), iniciados e intercalados por pausas, sem ocorrência de superposição de grupos com mesmo número de elementos.

III.17 a III.31 Ritmos hindus
Três grupos de exercícios. No primeiro, conjugação de dez diferentes talas rítmicas do sistema carnático a dez modos pentafônicos do sistema de Shiva, sobreposta a acorde ressonante construído com as notas do modo. No segundo, conjugação de duas talas rítmicas do sistema carnático a dois modos heptafônicos da classe prati-madhyama, sobreposta a acorde ressonante construído com as notas do modo. No terceiro, 14 exercícios livremente concebidos com base na conjugação de um outro modo da classe prati-madhyama com três talas do sistema Çarngadeva: sarasvatikanthabharana, parvatilocana e lakskmiça.


Volume IV: 10 exercícios

IV.1 Múltiplas articulações I
Quiálteras de tempo ou de compasso, presença de notas repetidas, contratempos e síncopes. Prevalência de grupos quialtéricos com sete elementos. Nos compassos 8, 13-15 e 45-46, nova textura, como nuvem sonora, em pp.

IV.2 Múltiplas articulações II
Acordes, um a cada compasso, em ff e em registros variados. Efeito de rítmica amétrica resultante de frequente variação da fórmula de compasso. Interrupção do fluxo de acordes pela sétima sol-fa em harmônicos. Sobreposição a esse intervalo, de textura em 4/4, bifônica, polirrítmica, mas movida – emprego de durações menores – em ppp. Volta aos acordes no compasso 14. 

IV.3 Múltiplas articulações III
Quinta variação de Ta’aroa (1971) com seus compassos 19, 20 e 21 ritmicamente variados. Obra inspirada em mito cosmogônico taitiano e designação de deusa da Polinésia com dois rostos. Exercício construído em dois planos: no primeiro, utilização de uma série de 12 sons – mib (re#), lab (sol#), sib (la#), si, mi, re, la, dó, sol, dó#, fa, fa# – em durações longas, reapresentada em retrógrado e transposta um semitom acima; no segundo, alternância entre notas repetidas, organizadas em grupos com número variado de elementos, e segmentos a duas vozes. Contraponto rítmico complexo entre as vozes, engendrado pela superposição de grupos com articulações e número de elementos conflitantes. Ênfase nas quintinas com pausas intercaladas. Peça não subordinada à técnica dodecafônica, apesar do emprego de uma série e de sua retrógrada. 

IV.4 a IV.7 Jogo rítmico entre articulações regulares e irregulares
Subdivisão da unidade métrica (unidade de compasso) em durações isócronas (semicolcheias) agrupadas em dois padrões diferentes superpostos: o superior, consonante com a métrica; o inferior, dissonante. Polirritmia no nível do agrupamento das subdivisões. 

                 3 x 4 semicolcheias + 4 semicolcheias
IV.4.     16 semicolcheias =     -----------------------      ----------------------
                 4 x 3 semicolcheias + 4 semicolcheias 

                    5 x 4 semicolcheias 
IV.5.     20 semicolcheias =     ------------------------- -
                 4 x 5 semicolcheias 

                 7 x 4 semicolcheias 
IV.6.     28 semicolcheias =     -----------------------     
                 4 x 7 semicolcheias


                  11 x 4 semicolcheias
IV.7     44 semicolcheias =     -----------------------------------------------------      
                 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + 8 + 9 semicolcheias

IV.8 Passacalha-chacona rítmica
Sete variações sobre um tema construído em acordes alterados (harmonia peregrina) com diferentes durações. Em cada uma, exploração de uma questão rítmica expressa nos subtítulos: síncopes espacializadas; colcheias repetidas com acentos variados em oitavas; colcheias contínuas em oitavas, dentro da medida de cada compasso; pedal de colcheias com a nota sol bequadro com intervenções intervalares irregulares; quiálteras: um tempo a mais da medida de cada compasso; quiálteras irregulares; antecipações harmônicas por meio de apogiaturas.

IV.9 Alternância de compassos. Coral Rítmico
Coral rítmico ilustrativo de modo serial dodecafônico. Exploração de alternâncias de fórmulas de compasso sem mudança de pulso e velocidade.

IV.10 Alternância de compassos. Coral rítmico diatonizado
Diatonização (mi maior) do coral rítmico do exercício anterior.

 
Referências bibliográficas


Obras consultadas

AGAWU, Kofi. Representing african music. Postcolonial notes, queries, positions. New York: Routledge, 2003.

ANDRADE, Mario. Dicionário Musical Brasileiro. S.Paulo: Editora da Universidade de S. Paulo e Editora Itatiaia, 1989.

AROM, Simha. Polyphonies et polyrythmies instrumentales d’Afrique Centrale. Paris: SELAF, 1985.

BERNARD, Jonathan. The evolution of Elliott Carter’s rhythmic practice, Perspectives of New Music, 1988, 164-203.

CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. 1962.

EMMANUEL, Maurice. Histoire de la langue musicale. Paris: Librairie Renouard, 1908, vol. I.

GANDELMAN Salomea. 36 compositores brasileiros: obras para piano (1950/1988). Rio de Janeiro: Funarte/Relume-Dumará, 1997.

KOELLREUTTER, Hans J. Terminologia de uma nova estética da música. Porto Alegre: Movimento, 1990, 2a edição. 

LAVIGNAC, Albert. Encyclopédie de la musique et Dictionnaire du conservatoire. Paris: Librairie Ch. Delagrave, 1913, parte I.

SACHS, Curt. Rhythm and tempo. A study in music history. New York: W.W. Norton & Company, 1953.

MESSIAEN, Olivier. Traité de rythme, de couleur, et d’ornithologie. Paris: Alphonse Leduc, 1949-1992, vol. I.

PERSICHETTI, Vincent. Twentieth-century harmony: creative aspects and practice. New York: Norton, 1961.

SCLIAR, Esther. Compassos. Elementos de teoria musical. São Paulo: Novas Metas, 1986.

SIMMS, Brian R. Music of the twentieth century. New York: Schirmer Books, 1986.

SMITHER, Howard. Theorie of rhythm in the nineteenth and twentieth centuries with a contribution to the theory of rhythm for the study of twentieth-century music. Tese de Doutoramento. Cornell University, 1960.

SWANWICK, Keith. Music, mind and education (1988). London and New York: Routledge, 1994.

______. Musical knowledge. London and New York: Routledge, 1994.

SWANWICK, Keith and TILLMAN, June. The sequence of musical development.  British Journal of Music Education, v.3, no. 3, 1986, p. 305-339.

WINOLD, Allen. Rhythm in twentieth-century music. In: DELONE, Richard et al. Aspects of twentieth-century music. New Jersey: Prentice-Hall, 1975.


Partituras

ALMEIDA PRADO, Jose Antonio de. Cartilha rítmica para piano. Campinas. Manuscrito do autor, 4 vols., 1992-2005.


Teses sobre Almeida Prado e sua obra para piano

ALBRECHT, Cintia Costa Macedo. Um estudo analítico das sonatinas para piano solo de Almeida Prado visando a sua performance. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2006.

ALMEIDA PRADO, José A. de. Cartas Celestes, uma uranografia sonora geradora de novos processos composicionais. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas, 1985.

CORVISIER, Fernando. The ten piano sonatas of Almeida Prado – the development of his composicional style. Doctoral Dissertation. University of Houston, 1997.

GOMES FILHO, Tarcísio. A prática intertextual em peças para piano de Almeida Prado: elementos de análise para construção da performance. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2010.


Dissertações sobre Almeida Prado e sua obra para piano

ASSIS, Ana C. de. O timbre em Ilhas e Savanas, de Almeida Prado – uma contribuição às práticas interpretativas. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 1997.

BENETTI Junior, Alfonso. Comunicação estrutural e comunicação emocional nas Variações sobre um tema nordestino de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.


COSTA, Régis G. da. Os momentos de Almeida Prado: laboratório de experimentos composicionais. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

COSTA, Thiago de Freitas Câmara A edição crítica e revisada dos noturnos para piano de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Escola de Comunicações e Artes/USP, 2011.
FONTANA, Tauir Agnoletto. Decisões interpretativas nas Cartas Celestes I de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.
FRAGA, Elisa M. Zein. O livro das duas meninas, de Almeida Prado: uma outra leitura. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 1994.

GROSSO, Hideraldo L. Os prelúdios para piano, de Almeida Prado – fundamentos para uma interpretação. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997.

MONTEIRO, Sergio C. L. Rios, de Almeida Prado: contribuições para uma interpretação pianística. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

MOREIRA, Adriana L. da C. A poética nos 16 Poesilúdios para piano, de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2002.

RAMALHO, Rafael G. A imagem da arte da música: uma musicologia da Profecia nº 1, de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro, 2004.

ROCHA, Junia C. Decisões técnico-musicais e interpretativas no Segundo Caderno de Poesilúdios para piano, de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerias, 2004.

SANT’ANA, Edson, Hansen. Expressividade intervalar nos poesilúdios de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, 2009.

SILVA, Elizabete A. da. A temática religiosa em Le Rosaire de Medjugorjie – icône sonore pour piano, de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994.

THYS, Marcelo Greenhalgh. A prática do piano a quatro mãos : problemas, soluções e sua aplicação ao estudo de peças de Almeida Prado e Ronaldo Miranda. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2007.

YANSEN, Carlos Alberto Silva. Almeida Prado: Estudos para piano, aspectos técnico-interpretativos. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2005.


Pósfacio

A Cartilha Rítmica para Piano, de Almeida Prado, é mais do que o nome promete – verdadeiro mapa da linguagem pianística  de um grande compositor brasileiro. Ele mesmo definiu bem: “Poderia ser um Czerny para os dias de hoje” – exercícios que , pela sua qualidade, até merecem a sala de concertos. 
Tudo começou com uma encomenda de Salomea Gandelman, pianista e musicóloga. Ela sugeriu que Almeida Prado organizasse suas intrincadas propostas rítmicas de forma a facilitar o acesso dos estudantes de piano a uma obra que tem momentos grandiosos como as “Cartas Celestes”.
O compositor aceitou a proposta, mas o que resultou disso supera as expectativas. Vemos uma linguagem pianistica que se desdobra com liberdade estonteante, mesmo se partindo, às vezes, de modelos tradicionais: um prelúdio de Bach, um tema de modinha, que de repente se transfiguram, de modo a trabalhar possibilidades rítmicas. Parece improvisação, mas o que transparece é sobretudo a felicidade com que um autor descobre caminhos novos. 
A ideia é partir de variantes rítmicas. O autor reviu seus contatos com Hindemith, Messiaen; lembrou-se do Bela Bartok do Mikrokosmos; passeia pela métrica grega, mas desembarca em ritmos de culturas não europeias, como os afro-brasileiros e os hindus.
Por baixo, da simplicidades aparente escondem-se as maiores sutilezas. Ele vai dos compassos mais fáceis, como o 2/4, aos mais complexos, como o 10/16, 7/8 contra 4/8, 15/32. Trabalha a polirritmia, as mudanças controladas de andamento. Acompanha o livro um CD, registrando boa parte dos exercícios.
Sobre esse macrocosmos musical, Sara Cohen e Salomea Gandelman realizaram o mais cuidadoso e competente trabalho de edição, dando a estudantes e estudiosos pistas para a entrada nesse território feérico de nossa música contemporânea. 

Luiz Paulo Horta