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Ária Brasileira – Langsdorff e o primeiro registro musical de uma modinha no Brasil

13/03/2020

Na segunda metade do século XVIII, desenvolveu-se na Europa um novo estilo de canção camerística a uma ou mais vozes, acompanhada por instrumento harmônico. Na Itália surgiu a canzonetta, na França a ariette, na Alemanha o Lied e em Portugal o novo estilo denominou-se modinha. Algum tempo depois, a modinha portuguesa chegou ao Brasil.

 

Sua origem se deve a um fenômeno europeu daquele período - a ascensão da burguesia - e a consequente adoção de uma prática musical doméstica ou de salão menos formal que a ópera ou a música religiosa. Segundo CASTAGNA (2003, p. 6), “a música doméstica urbana (...) privilegiou formas de pequeno número de intérpretes, de fácil execução técnica e de restrito apelo intelectual”.

 

Somente no início do século XIX ocorreria o registro musical de uma modinha seguramente cantada em terras brasileiras. Deve-se a Grigóry Ivanovitch Langsdorff (1774-1852) tal registro, realizado na Vila de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina, no ano de 1804.

 

Além de Langsdorff, outros viajantes e exploradores também chegaram a registrar as modinhas praticadas no Brasil, como é o caso dos austríacos Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), enviados pelo rei da Baviera para realizar um levantamento botânico, zoológico, mineralógico e etnológico em diversas províncias brasileiras. Deles é a primeira coletânea de modinhas, com quatro canções recolhidas em São Paulo, uma em Minas, uma na Bahia, além de outra com indicação de lundu e 14 melodias indígenas.

 

Langsdorff era médico, além de pesquisador e naturalista. Nascido na Alemanha, atuou como correspondente da Academia Imperial de Ciências da Rússia e participou da primeira grande expedição de circum-navegação russa no início do século XIX (1803-1806). Em 1813, Langsdorff é denominado cônsul-geral da Rússia no Rio de Janeiro, cargo que exerceria até 1815. Com a elevação do Brasil a reino, decidiu permanecer no país. Em sua residência eram frequentes os saraus de música e, em sua fazenda nos arredores da cidade, eram comuns os encontros de cientistas e artistas europeus e brasileiros.

 

Naquele período, encontrava-se no Rio de Janeiro o compositor austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858), amigo de Langsdorff, com quem havia convivido em São Petesburgo anteriormente. Neukomm era presença constante nos saraus promovidos na casa dos Langsdorff e dedicou ao casal sua fantasia para piano e flauta – L’Amoureux, a primeira obra clássica inspirada em uma modinha.

 

 

Na década de 1820, Langsdorff empreendeu uma expedição pelo Brasil com apoio do Czar Alexandre I e da Academia de Ciências da Rússia. Partindo do rio Tietê no interior de São Paulo, percorreu diversos Estados até a região norte do país entre 1826 e 1829, regressando ao Rio de Janeiro após mais de 6000 quilômetros percorridos. Na expedição, além de cientistas, estavam os pintores Johann Moritz Rugendas (1802-1858) e Adrien Taunay (1803-1828), para documentar e ilustrar seus achados.

 

Contudo, foi na expedição de circum-navegação russa anterior que Langsdorff deparou-se com uma manifestação genuína em terras catarinenses, em 1804. Algumas de suas impressões foram anotadas e publicadas posteriormente:

 

“(...) À noite as pessoas se encontram em pequenos grupos de familiares, onde se dança, brinca, ri, canta-se e contam-se anedotas, conforme a tradição portuguesa. Os instrumentos musicais mais usados são a viola e o chocalho. A música é cheia de expressão, terna e sentimental. As canções são de conteúdo modesto, frequentemente reiterando temas como amor por mulheres, corações sangrentos e feridos, desejos e saudades.” (LANGSDORFF, 1818 apud CASTAGNA, 2003).

 

Na mesma ocasião, Langsdorff descreve a visita a uma casa de família local:

 

“Na mesma tarde em que conheci tal senhor, deixei a Vila Nossa Senhora do Desterro e, a convite de meu novo guia, dirigi-me para o continente, no outro lado do estreito; à noitinha, pelas cinco horas, chegamos à residência dele. Ele e sua família viviam em uma pequena casinha, situada em paisagem encantadora e fértil, a uns cem passos da praia. (...) Fui recebido da maneira mais amigável, servido à moda da terra e do melhor que esta gente podia me dispensar. Duas filhas adultas, muito bem educadas, cantaram, a meu pedido, umas canções  agradáveis e expressivas, se bem que não tocavam instrumento musical, mas acompanhavam seu canto com uma concha, dentro da qual havia umas pedrinhas, semelhantes às castanholas espanholas, e que davam uma cadência com muita graça e simplicidade.” (LANGSDORFF, 1818 apud HOLLER & ROSA, 2009)

 

Esta canção que Langsdorff ouviu na casa de família está transcrita em sua obra e, segundo CASTAGNA (2003) seria “o primeiro registro musical de uma modinha seguramente cantada em solo brasileiro”.

 

Fig. 1: "Ária Brasileira" (modinha) coletada por Langsdorff em Santa Catarina

 

Agradecimento

À Luiz Fernando Pereira da Silva, pela valiosa contribuição compartilhando o material necessário à elaboração deste artigo, bem como pela edição da partitura da Ária Brasileira.

 

Referências:

CASTAGNA, P. A. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. In: História da Música Brasileira. São Paulo: Instituto de Artes da UNESP, apostila de curso, 2003. Não publicado.

HOLLER, M. T. & ROSA, D. Fontes sobre a canção em Desterro no século XIX. In: D A Pesquisa, Florianópolis, v.4 n.6, p.448-453, 2009.